Janaina Conceição Paschoal
Correio Braziliense
Professora livre docente de direito penal na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e advogada
Mohamad Ale Hasan Mahmoud
Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), mestre e doutor em direito penal pela USP
Muito se discute o papel e o limite de atuação do Estado, sobretudo no Brasil, que é uma democracia adolescente, em que ainda não se respeitam plenamente as liberdades individuais e não há fronteiras nítidas entre o público e o privado.
Por mais que os diplomas normativos sejam avançados, vigora certo saudosismo da ditadura, que se revela no estrondoso sucesso de reality shows, como o Big Brother, o qual consagra termos como paredão e eliminação, em uma espécie de culto do que temos de pior.
Recentemente, a criatura ganhou vida própria, ultrapassando as cercanias da participação do público pelos meios convencionais, ganhando outros foros, como o Twitter, culminando por transmudar o relacionamento de dois participantes em caso de polícia, pois os telespectadores ficaram chocados diante de um suposto estupro.
Os crimes sexuais, em regra, dependem da autorização da vítima para que seja iniciada a atuação estatal. Nada mais natural, porquanto o ato sexual é pautado por um elastério de práticas que somente os parceiros têm a exata dimensão do que é, ou não, lícito.
Na hipótese, contudo, em razão da possibilidade de a moça estar inconsciente, entendeu-se tratar de um quadro de vulnerabilidade, cabendo à polícia, então, agir prontamente. Todavia, uma vez que a moça esclareceu ter concordado com o comportamento do
rapaz, não há que se falar em crime.
O Big Brother tem estimulado juízos sumários, julgamentos açodados, em que pessoas são sacadas, eventualmente substituídas, como verdadeiras peças. No caso de Monique e Daniel, houve até mesmo o encaminhamento desse último participante à delegacia, sem que a suposta vítima tivesse manifestado o interesse respectivo. Mesmo após a expressa manifestação da moça, no sentido de que não sofrera qualquer crime, o rapaz foi proibido de deixar o país, tendo as vestes íntimas do casal sido remetidas à perícia.
Não houve a preocupação em investigar se, realmente, teria ocorrido, na tal ocasião, falta de consciência ou dissenso.
Aliás, a última preocupação foi com a liberdade sexual da mulher.
Sob a desculpa de que o estupro praticado contra vulneráveis deve ser apurado independentemente da vontade da vítima, a palavra de Monique fora simplesmente desconsiderada.
Se Monique estivesse realmente inconsciente e alheia aos atos de Daniel, seria possível falar em vulnerabilidade, para fins de caracterizar o crime. Entretanto, tratando-se de pessoa capaz, uma vez consciente, sua manifestação no sentido de que não tem interesse em ver o agressor processado haveria de ser soberana.
Não só a palavra de Monique vem sendo desrespeitada. A lei também parece ser irrelevante para o espetáculo que se estabeleceu.
De fato, o artigo 225 do Código Penal é claro ao estabelecer que a ação penal não depende da vontade da vítima se se tratar de menor de 18 anos, ou de pessoa vulnerável, sendo certo que, no caso, a moça é capaz.
Incrivelmente, pessoas que se apresentam como defensoras dos direitos da mulher vêm sustentando a necessidade de punir-se Daniel, em absoluta afronta à vontade de Monique, como se esta precisasse de tutela. Não é menos estapafúrdia a tese de que a moça estaria vulnerável pelo interesse em permanecer na casa, para obter o prêmio.
Proteger a mulher também está relacionado à necessidade de ouvi-la e respeitar sua vontade. O caso do suposto estupro está servindo para que os intolerantes de plantão exijam censura e retaliação à emissora de televisão, que sempre foi tida como o grande satã.
É bem verdade que o ocorrido deveria servir para os responsáveis pelo programa reverem o crescente incentivo ao abuso de bebidas dentro da casa, pois é sabido que o álcool é a droga mais relacionada a diversas mazelas sociais. No entanto, todos nós poderíamos aproveitar o fato para rever esse inegável gosto pelo grotesco e mesmo pelo crime. Uma democracia real limita a atuação do Estado, mas também incentiva os indivíduos a cuidarem de suas próprias vidas e a respeitarem a liberdade e a manifestação de vontade dos outros indivíduos.
Talvez seja o momento de perceber que não precisamos mais de Big Brothers.
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