terça-feira, 17 de janeiro de 2012

"coprofilia"

O texto é de 1996, fez doze anos, e vejam como é absolutamente atual. O político mais erudito que tivemos depois de Rui Barbosa, o falecido Sen Roberto Campos nos antecipa o denuncismo sem propostas da mídia, com o neologismo "cropofilia".

O papel da mídia ética e eficiente é reunir conhecimentos em busca de soluções e orientar seu leitor e a sociedade a fim de se obter a melhor forma de se resolver problemas sociais e econômicos. Vê-se, desde épocas remotas, que nossa mídia apenas denuncia com forte sensacionalismo.

Se a sociedade, de fato, se importasse ou estivesse ligada, doze anos já teríamos construído outro Brasil mais ético.



Uma nova doença: a "coprofilia"
Roberto Campos 
14/1/96

"Metade da ciência é descobrir as respostas exatas; metade é formular as perguntas corretas"
Alfred Whitehead

A mídia brasileira está atacada pela síndrome da "coprofilia". Essa combinação de palavras gregas significa "amor ao excremento". Consiste na transformação de impropriedades administrativas, ou praxes eleitorais quase rotineiras, em "escândalos" éticos.

É um moralismo hipócrita. Enquanto a moralidade é uma virtude, o moralismo é um cacoete.
Exemplo de coprofilia é a celeuma levantada em torno da pasta rosa e do caso Sivam. Celeuma que impede uma análise racional dos fatos subjacentes e a adoção de corretivos adequados. Nenhuma coisa nem outra tem a ver com presidente Fernando Henrique Cardoso. E nem de longe deveriam servir de argumento ou pretexto para o retardamento das reformas ou desgaste da autoridade presidencial.

A mídia está cansada de saber que em toda a nossa vida republicana não houve político (a não ser talvez em nível de vereador), que se tenha eleito à base de papolina ou sola de sapato. Mesmo as mais carismáticas personalidades buscam apoio na máquina oficial de empréstimos e nomeações, em contribuições de grupos corporativos, ou doações de empresários.

Nossas eleições não são momentos cívicos. Nas áreas pobres e no grande interior, são exercícios de redistribuição de renda. O voto não é apenas um direito e sim o cumprimento de uma incômoda obrigação, em troca da qual o eleitor espera algum mimo: camisetas, "santinhos" e calendários, auxílio para doença e viagens, transporte e merenda nos dias eleitorais. Em muitos casos o candidato passa a ser um instituto de previdência ambulante.

Duas coisas tornam as eleições brasileiras particularmente dispendiosas. Uma é o voto universal obrigatório. No voto facultativo, os eleitores se automobilizam, sem necessidade de incentivo. Outra é o voto proporcional para as Assembléias Legislativas. No sistema de voto distrital, os candidatos são facilmente conhecidos, elegem-se em parte à base de relações pessoais, podendo além disso ser diretamente fiscalizados pelo eleitor.

Essas realidades brasileiras reduzem o "escândalo" da pasta rosa a proporções menores. Singulariza-se uma empresa entre milhares, e uma eleição, a de 1990, como exemplo de degradação política. É verdade que a Lei Eleitoral de então, num casuísmo irrealista depois revogado, proibia contribuições empresariais. Tal era seu o irrealismo que não se previram sanções e punições, sabendo-se de antemão que a lei não "pegaria".

Nos Estados Unidos, só se admitem contribuições de pessoas físicas ou clubes políticos. Mas o voto é voluntário, há uma tradição maior de civismo e são generosas as verbas governamentais para os fundos partidários. Nada disso acontece no caso brasileiro.

A fauna político brasileira é composta de espécimes variados. Há alguns ricos que se autofinanciam. Há os sindicalistas e ex-funcionários de estatais que se apóiam, direta ou indiretamente, nas respectivas corporações. Começam a surgir eleitos por seitas religiosas. Há os políticos no poder, que manipulam as máquinas burocráticas, saqueiam os bancos estaduais e fazem empreguismo eleitoral. O resto é o resto.

Dir-se-á que contribuições empresariais desvirtuam as eleições num sentido pró-capitalista. À parte o fato de que os empresários são cidadãos, com direito a expressarem preferências políticas da mesma forma que os sindicalistas, a verdade é que a política econômica brasileira, principalmente após a redemocratização, tem sido pronunciadamente populista e antiempresarial. O exemplo supremo é a Constituição de 1988, com seus monopólios e o hiperfiscalismo opressor da livre iniciativa. Como explicar o fenômeno?

Na realidade, inexiste uma frente empresarial coordenada. O apoio financeiro-eleitoral dos empresários obedece a motivações variadas e contraditórias. A primeira é "fisiológica": apóiam-se candidatos que prometam verbas, ou se comprometam a promover interesses específicos. A segunda é "ideológica": apóiam-se candidatos que defendem o ideário capitalista e favorecem a liberalização dos mercados. E há o "dinheiro de resgate", dado a políticos de esquerda, que em geral favorecem posições nacional protecionistas, e dos quais os empresários esperam comprar tolerância se chegarem ao poder. Muitos dos grandes empresários, que financiaram generosamente as campanhas de Collor e Fernando Henrique, não se esqueceram de reservar um dinheirinho de "resgate" para Brizola e Lula.

O caso Sivam, que atravessou vários governos, é outro exemplo de sensacionalismo, causador de "paranálise", isto é, a paralisia da análise. Há impropriedades administrativas, aliás já detectadas pelo Tribunal de Contas, que não chegam a configurar um escândalo.

O que sim é necessário, ante o custo do projeto, é uma análise cuidadosa da relação custo/benefício, tarefa a que os militares raramente se entregam com prazer, pois são treinados na cultura da "requisição" e não da "competição" por recursos escassos. O controle do espaço aéreo amazônico e o apoio à navegação são importantes, mas sê-lo-ão a ponto de justificar pesados investimentos? 

Há dúvidas a esclarecer, considerando-se que:
a) inexistem ameaças militares; 
b) o tráfego aéreo é apenas 3% do total do país; e, 
c) os modernos aviões equipados com o "GPS" se orientam por satélites e não por sinais de terra. Não seriam mais urgentes radares de aproximação em alguns aeroportos do Sul, sujeitos a intempéries climáticas? Não será a utilidade de sistemas sofisticados de detecção de contrabando de armas, mercadorias e drogas, anulada pela incapacidade de interceptação, por falta de helicópteros e aviões?

Será que o problema de proteção ambiental, hoje baseado em reconhecimento por satélites, será resolvido pelo Sivam, quando o real obstáculo do Ibama parece ser a insuficiência de guardas florestais e de meios de acesso. Qual o balanço desejável de investimentos entre detecção e interceptação?

O debate se tem centrado em saber se a tecnologia russa é mais barata. Considerando-se que Gorbatchov quase caiu do governo porque um teco-teco alemão pousou na praça Vermelha, e as defesas aéreas russas confundiram um Boeing coreano de passageiros com um bombardeiro, não há porque ser otimista sobre os sistemas soviéticos de vigilância.

A tecnologia francesa é certamente comparável à americana, mas a oferta financeira bem menos atraente que a do Export-Import Bank. Há quem defenda a execução do projeto exclusivamente por firmas e institutos nacionais. Temos certamente nichos de excelência acadêmica e industrial. Mas não temos escala de produção para tornar os custos aceitáveis, não dispomos de financiamento interno e não temos experiência de coordenação de sistemas da espécie.

É aconselhável, no caso, uma certa modéstia. Deveríamos exigir o máximo possível de subcontratação local e compromissos contratuais de continua atualização tecnológica para evitar rápida obsolescência. Deveríamos, a esta altura, estar vacinados contra o nacionalismo tecnológico, que nos levou ao desastre da política da informática, esta sim mais que um "escândalo": um crime contra a competitividade.

Num julgamento objetivo, nem o caso da pasta rosa nem o projeto Sivam justificam o clima de escândalo. Esse clima tem menos a ver com o moralismo político do que com o surto de coprofilia que contaminou a mídia brasileira.

ROBERTO CAMPOS, 78, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).
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