segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

A nova aliança atlântica

Roberto Campos
Domingo 07 de fevereiro de 1999

Na década dos 80 emergiram várias teorias sobre o "declinismo" ou o "decadentismo" americano. A grande nação estaria sofrendo de "sobreextensão imperial" - moléstia que explica o perecimento de vários impérios do passado. Essa "sobreextensão" pode resultar de aventuras militares, do debilitamento financeiro pelo excesso de encargos ou do esgotamento do modelo político-ideológico.

Este último fator explicou a espetacular implosão do império soviético em 1989. Na mesma década, começou-se a falar que o século 21 deixaria de ser o século do Atlântico para se tornar o século do Pacífico. Sucediam-se no Japão proezas tecnológicas, o país se tornara o maior credor do mundo, começava a se manifestar o dinamismo chinês, e os "tigres asiáticos" se distanciavam crescentemente dos demais "emergentes".

Na Europa receava-se o surgimento de uma nova doença, a "euroesclerose". Conquanto se confirmasse a superioridade do capitalismo sobre o socialismo, tornaram-se comuns avaliações depreciativas do capitalismo americano, de tipo individualista e bucaneiro, comparativamente ao capitalismo europeu, um pouco mais dirigista e assistencialista, e sobretudo ao capitalismo japonês, que parecia conciliar proeza tecnológica, coesão social, baixo desemprego e crescimento sustentado. Estaria à vista na franja do horizonte, o "século asiático".

Na atual década dos 90 a conjuntura global mudou dramaticamente. Os Estados Unidos deram a volta por cima, enquanto que a economia japonesa entrava num longo período de estagnação, insensível a juros baixos e estímulos fiscais, numa espécie de "armadilha de liquidez".

A Europa iniciou sua dieta de emagrecimento pois que a preparação para a moeda única, iniciada em 1992 com o Tratado de Maastricht, impôs severos tetos ao déficit público. Os emergentes asiáticos continuaram sua trajetória ascendente, reforçada pelo surto de crescimento das regiões capitalistas da China Continental, mas foram afinal colhidos pela crise em 1997.

Que está na raiz da retomada do crescimento americano, que tornou esse país a verdadeira locomotiva do fim do século?

Em primeiro lugar, a aceitação, mais desinibida do que na Europa ou Japão, do capitalismo competitivo, que resulta, como dizia Schumpeter, numa constante "destruição criadora". Com menores encargos assistenciais que os europeus, os americanos exploraram melhor as virtuosidades da redução de impostos para estímulo da oferta privada (supply side economics).

Em segundo lugar, a flexibilidade da mão-de-obra, quer em termos de livre negociação salarial, quer de mobilidade física em busca de oportunidades de trabalho.

Em terceiro lugar, o espírito de inovação, que não se confina ao aspecto tecnológico, mas que abrange qualquer medida que contribua para incrementar o "valor adicionado".

Enquanto que, na década dos 80, os japoneses superavam os ocidentais em inovações no processo fabril, na atual década são os americanos os pioneiros nas inovações no setor de finanças, serviços e tecnologias científicas. Obedecendo a impulsos de mercado, antes que à "política industrial" de burocratas iluminados, os americanos assumiram a liderança dos setores de tecnologia mais dinâmica como informática, telecomunicações e engenharia genética.

Se a década dos 80 foi predominantemente asiática, a dos 90 hegemonicamente americana, é provável que na próxima década assistamos a um renascimento europeu. Este será facilitado por dois motivos. Primeiro, a criação da moeda única, que formará um mercado comercial e financeiro de 6,5 trilhões de dólares, pouco abaixo dos 8 trilhões do mercado americano. Ambos os grupos exportam cerca de 11% do PIB e têm uma porcentagem do comércio mundial em torno de 18%.

Há na Bolsa americana 9.900 firmas listadas contra 9.000 nas bolsas européias. Em segundo lugar, porque a economia européia está corrigindo sua defasagem tecnológica em relação aos Estados Unidos, no tocante à tecnologia de finanças, informática, engenharia genética e telecomunicações.

Começam a surgir na Europa os "venture capitalists", voltados profissionalmente para o fomento das inovações. Na década dos 80 os Estados Unidos tinham uma séria desvantagem em relação à Europa: era seu grave déficit gêmeo - o fiscal e o cambial. Hoje o primeiro deles se transformou em superávit mas o segundo, que atinge a casa dos 300 bilhões de dólares anuais gera a apreensão de um eventual colapso do dólar.

Em compensação, os Estados Unidos mantêm duas vantagens: (1) mercado de trabalho mais flexível, resultando em menor desemprego; (2) perfil demográfico mais favorável. Comparativamente à Europa, os problemas fiscais ligados ao envelhecimento da população são menores nos Estados Unidos, onde o envelhecimento é menos rápido, maior o influxo de imigrantes, menos generosa a seguridade pública e mais forte o sistema de capitalização privada.

A perspectiva de um século 21 sob hegemonia asiática é cada vez mais remota, em virtude da crescente integração atlântica entre a Norte-América e a Europa. Essa integração não é propriamente comercial - pois permanecem intensos os atritos mercantis - mas sim financeira e tecnológica. Isso se traduz no fenômeno das mega-fusões e incorporações.

Na indústria automobilística, fundiram-se a Daimler-Benz e a Chrysler. No setor financeiro, fala-se na absorção no Banker's Trust pelo Deutsche Bank. Nas telecomunicações, o grupo inglês Vodaphone adquiriu a Air Touch americana, tornando-se o maior operador mundial de celulares.

São indicadores dessa grande aliança transatlântica em formação o movimento de desregulamentação, as alianças tecnológicas, a integração de complexos financeiros, a uniformização de técnicas gerenciais e a grande onda de fusões e incorporações. 

Contrastando com essa integração da aliança Atlântica, existe uma crescente marginalização dos países emergentes, seja, na América Latina, seja na Cortina de Ferro. O fluxo de capitais que para lá se dirigiam em busca de maior rentabilidade, praticamente secou. Os empréstimos de bancos comerciais dos países credores aos países emergentes caíram de 121 bilhões de dólares em 1997 para 10 bilhões no ano passado.

Cada vez mais o capital flui de ricos para ricos do que destes para os pobres. E os fluxos destinados à compra de ações e títulos de renda fixa se inverteram drasticamente, em resultado das sucessivas crises - a mexicana, a asiática, a russa e agora a brasileira. Em todos esses casos, as desvalorizações monetárias criaram o medo de perdas patrimoniais, que supera o atrativo dos juros altos. E permanece a conhecida lei de Krugman: "não há penas desvalorizações cambiais ou desvalorizações controladas, nos países emergentes".

Nos países desenvolvidos, as desvalorizações cedo se auto-limitam, porque despertam no exterior a vontade de compra dos ativos depreciados. Os fluxos de capitais para os países emergentes se tornaram cada vez mais seletivos, confinando-se hoje a países considerados "apostas estratégicas", como China, Coréia, México ou Polônia. A Rússia e a Indonésia saíram do radar dos investidores. E o Brasil, que no ano passado atraiu 24 bilhões de dólares de investimentos diretos, corre atualmente o risco de perder o caráter de "aposta estratégica".

Para evitar esse desfecho, temos que fazer com que a taxa cambial reencontre rápido seu ponto de equilíbrio, terminando-se o severo "overshooting" sofrido pelo real. É necessário controlar o repique inflacionário através de um ajuste fiscal rigoroso e da manutenção de uma economia desindexada.

Mas o grande trunfo brasileiro para continuar a ser uma "aposta estratégica" está nas privatizações. Longe de ser postergadas em virtude da crise, elas devem ser aceleradas como elemento contributivo para a solução da crise.
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