Abusos cometidos por diplomatas em Nova York mostram como a corrupção faz parte da cultura de certos países
Diogo Schelp
Há uma antiga discussão, muito presente no Brasil de hoje, sobre as raízes da enorme corrupção existente em determinados países. Basicamente, trata-se de escolher entre duas possibilidades para explicar a desonestidade dos homens públicos e de seus apaniguados. Na primeira hipótese, a tendência para um comportamento pouco ético decorreria de fatores culturais dominantes em determinada sociedade. Na segunda, seria a decorrência natural da falta de instrumentos legais adequados para punir a corrupção e o desrespeito à lei. Um estudo feito por dois economistas americanos – Raymond Fisman, da Universidade Colúmbia, em Nova York, e Edward Miguel, da Universidade da Califórnia – indica que a questão cultural tem um peso primordial sobre a conduta ética de uma sociedade. Os dados estatísticos para sustentar essa opinião são inesperados, mas convincentes: as 150.000 multas de estacionamento proibido não pagas por diplomatas estrangeiros na cidade de Nova York entre 1997 e 2002, no valor de 18 milhões de dólares.
Bastou tabular a nacionalidade dos infratores para perceber que a maior proporção de multas não pagas era justamente de diplomatas vindos de países notórios pela corrupção e pelo abuso de poder. O comportamento abusado no exterior revelou-se um excelente medidor dos maus hábitos da elite governante de um país. Ao se valer da certeza de impunidade para estacionar em local proibido, o diplomata está cometendo um abuso de poder em proveito próprio. Esse é o mesmo princípio que leva um político a desviar dinheiro público ou um policial a aceitar propina de um bicheiro. Prevalecem, no topo do ranking do mau comportamento, nações africanas e do Oriente Médio. Na outra ponta da lista, a dos diplomatas que não tiraram proveito da imunidade para estacionar livremente em local proibido ou pagaram suas multas, estão sobretudo países do Primeiro Mundo, como Suécia, Noruega e Inglaterra.
Os pesquisadores concluíram que a diferença de comportamento só pode ter uma explicação cultural, já que todos os diplomatas, independentemente da nacionalidade, desfrutam o mesmo privilégio de não poder ser processados ou presos. "Os diplomatas trouxeram para Nova York o comportamento ético adquirido com as experiências de vida que tiveram em seu país de origem", disse a VEJA Edward Miguel. Ou seja, quem se acostumou a um ambiente corrupto, em que se valorizam o "jeitinho" e o proveito próprio em detrimento do bem-estar público, tende a repetir essa postura em outros lugares. "Essa característica independe de um país ser uma democracia ou uma ditadura ou seguir esta ou aquela religião", acrescenta Raymond Fisman. Por outro lado, é possível estabelecer uma relação estreita entre renda per capita baixa e maior tendência à corrupção. Ainda que isso não valha como regra geral, visto que o campeão de infrações é um país de renda per capita altíssima, o Kuwait. Em média, cada membro da missão diplomática do país árabe recebeu e não pagou a extravagante quantidade de 246 multas por estacionamento proibido.
De maneira geral, a lista elaborada por Miguel e Fisman das nacionalidades com maior inclinação à corrupção coincide com outros rankings do gênero, como o da Transparência Internacional (TI), organização dedicada ao combate da corrupção, com sede em Berlim. Chade, Sudão e Paquistão, que aparecem entre os dez países com a maior proporção de multas não pagas em Nova York, estão igualmente entre os mais corruptos do ranking da Transparência. O Brasil, que na lista da TI tem os mesmos índices de corrupção da China e do Egito, aparece em 29º lugar no das multas não pagas, entre Bangladesh, um dos três países mais miseráveis da Ásia, e Serra Leoa, o segundo mais pobre do mundo, recém-saído de uma década de guerra civil. Qual a explicação para essa posição desconfortável, a pior entre os latino-americanos? Talvez se aproveitar da imunidade diplomática em Nova York seja eco da mesma dinâmica psicológica que levou ao mensalão, à máfia dos sanguessugas e aos dólares na cueca. A missão brasileira na ONU informa que a situação mudou e ela já não dá calote em multas de estacionamento. Atualmente, só dois funcionários da missão têm carro com placa diplomática.
A situação do Kuwait, o campeão entre os aproveitadores no trânsito nova-iorquino, contém um paradoxo, pois o país do Golfo Pérsico, que é dono de 10% das reservas mundiais de petróleo, está bem colocado no ranking da corrupção da Transparência Internacional. Uma das razões para essa disparidade pode estar na diferença de metodologia entre as pesquisas. A vantagem do teste do estacionamento é que ele dá uma medida objetiva para a conduta ética, enquanto os critérios da TI se baseiam na percepção que formadores de opinião e a população têm do grau de corrupção em determinado país. No Kuwait, reino governado por uma elite tribal e desprovido de imprensa independente, são pequenas as oportunidades para a população tomar conhecimento de casos de corrupção envolvendo os manda-chuvas – o que pode influenciar a percepção da ética nacional. Isso, no entanto, não explica tudo.
Uma hipótese plausível para o comportamento deplorável dos diplomatas do Kuwait – e de outros campeões da corrupção – é que há, entre a elite do país, uma subcultura do privilégio. São pessoas acostumadas a receber vantagens e que, por isso mesmo, exercem um supremo desdém pelo bem-estar das demais pessoas. Parar em fila dupla no trânsito caótico de Manhattan na hora do rush? "Tanto faz se isso atrapalha os outros motoristas, eu posso", pensam esses infratores. No Kuwait, essa característica é levada ao extremo. O poder econômico e político do país é concentrado na mão de um punhado de famílias, e o governo, o maior empregador do país, oferece tratamento especial aos nascidos no Kuwait, com salários mais altos e preferência na hora da contratação. Dos quase 3 milhões de habitantes do país, 2 milhões são cidadãos de segunda classe – quem é naturalizado há menos de vinte anos nem mesmo pode votar. O direito de voto é restrito a 15% da população do Kuwait. "Quem está acostumado a privilégios considera que faz parte de seu salário não pagar uma multa ou valer-se de um bem público em proveito próprio", diz Renato Janine Ribeiro, professor de ética da Universidade de São Paulo. A parcela da população que não conta com benefícios especiais, por sua vez, observa os privilégios dos outros e sente-se no direito de tentar tirar vantagem onde puder. Tem-se, assim, o efeito bola de neve, que, como acontece no Brasil, cria uma sociedade em que a corrupção se auto-alimenta.
Como os diplomatas em geral são funcionários bem pagos, o teste do estacionamento derruba o mito de que salários altos inibem a corrupção e o comportamento aético. Outras tentativas de medir o grau de honestidade de determinados grupos de pessoas apontam para a mesma conclusão. Em 2001, foram divulgados os resultados de um teste de integridade feito pela polícia australiana. Entre outras técnicas, deixava-se uma carteira com dinheiro e telefones para contato em locais próximos a delegacias de polícia. Em média, um terço dos policiais que encontravam as carteiras não as devolvia, índice que se repetiu em outras cidades onde o teste foi aplicado, ao redor do mundo, independentemente do salário recebido. As estatísticas das infrações de trânsito em Nova York também comprovam o poder da repressão para coibir a corrupção. Primeiro porque, quando o Senado americano aprovou algumas medidas de punição aos diplomatas infratores, em 2002, as multas entre eles tiveram uma queda significativa em Nova York (além de outras novidades, passou a ser permitido guinchar os carros com placas diplomáticas e estipulou-se que 110% do valor das multas não pagas seria descontado da ajuda internacional que o país em questão recebe dos Estados Unidos). Segundo porque, com o passar dos anos, mesmo os diplomatas de países com baixos índices de corrupção acostumavam-se à impunidade e, aos poucos, estacionavam em local proibido com mais freqüência. Ou seja, comportamento ético – mesmo o mais arraigado na cultura nacional – fica sempre relaxado sem uma boa dose de punição exemplar.
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