Antonio Nobre Ricardo R. Rodrigues
Valor Econômico
No país dos superlativos, o gigantismo do nosso sistema hidrológico também entra no rol de maior do mundo: são mais de 9 milhões de quilômetros de rios. Enfileirados dariam 220 voltas na Terra, ou cobririam 22 vezes a distância à Lua. Da estabilidade, vigor e saúde desses rios dependem o suprimento das cidades, a segurança hidrológica, a geração de eletricidade, a irrigação na agricultura e a sobrevivência de preciosa biodiversidade. As bacias hidrográficas adequadamente florestadas, como ainda vemos em parte da Amazônia, mantém rios ricos e saudáveis. No contraponto, as terras agrícolas degradadas e os efluentes urbanos e industriais tem péssimas consequências.
A destruição indiscriminada dos ecossistemas resulta sempre em elevados prejuízos. Com a degradação das terras, das águas, do clima e da biodiversidade surgem múltiplos impactos na saúde e também consequências econômicas, nem sempre devidamente reconhecidas ou contabilizadas. A complacência com a destruição é herança da mentalidade colonial europeia e da revolução industrial, dois aríetes históricos que deixaram um rastro de destruição mundo afora. Mas a consciência sobre a necessidade de preservação das florestas não é recente nem é um luxo urbano. Em 1537 o governador desta colônia portuguesa, Duarte Coelho, determinou: "E assim mando que todo povo se sirva e logre dos ditos matos,..., tirando fazer roça que não farão,... e... árvores maiores... não cortarão sem minha licença..., porque tais árvores são para outras coisas de maior substância..., e assim resguardarão todas as madeiras e matos que estão ao redor dos ribeiros e fontes." Em meados do século XIX, D. Pedro II, premido pela degradação da água que abastecia o Rio de Janeiro, desapropriou fazendas no maciço da Tijuca e mandou reflorestar a mata Atlântica. Hoje, como no tempo do descobrimento, fluem cristalinas as águas alí.
Como resposta a séculos de abuso, o primeiro código florestal de 1934 já veio tarde. O desrespeito generalizado ao "resguardo das madeiras e matos ao redor de ribeiros e fontes" comprometeu águas por toda parte. E para azar dos rios, o despejo crescente de esgotos e todo tipo de contaminantes somou-se à centenária erosão das terras desnudas. O código florestal evoluiu no interesse do bem comum, peitando a arraigada mentalidade desmatadora, oferecendo assim um mínimo de proteção para as florestas, e com elas para as águas e para os rios. Apesar disso, para muitos a lei era regra de papel, e as florestas continuaram a tombar. Acumulou-se extenso passivo de ilegalidade nas propriedades, situação colocada em evidencia pelo eficiente cerco de fiscalização e punição dos anos recentes. A reação no setor rural foi curiosa: se a obediência é inescapável, então desconstrua-se a lei. Suportados por uma azeitada máquina política no Congresso e investindo pesado em retórica, lideranças deste setor vem tentando justificar o afrouxamento na lei.
Não há argumento científico ou de interesse agrícola para não recompor as matas ciliares
Com recurso à ciência, analisemos apenas a alegação de que restaurar matas de galeria, os indispensáveis cílios ecológicos de proteção aos corpos d"água, reduzirá a área disponível para a produção de alimentos. Estudos feitos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), cobrindo milhões de hectares em várias partes do país, encontraram que a superfície que era destinada à proteção de matas ciliares em propriedades privadas, seguindo as estipulações do revogado Código Florestal de 1965, ocupava apenas de 7 a 9% da área total; para proteger todas nascentes acrescentavam-se ínfimos 0,2%. Superando duas vezes essa área de proteção, a superfície ocupada por terrenos úmidos foi estimada em 17%. Ora, os terrenos úmidos, com lençol freático exposto, são impróprios para a maioria das práticas agrícolas.
O arroz irrigado, uma das poucas culturas aptas a crescer em terrenos úmidos, foi usado repetidamente como exemplo de área agrícola consolidada, na tentativa de justificar a redução generalizada das áreas de proteção no entorno de rios. Contudo, com aproximadamente 1,3 milhões de hectares, essa cultura ocupa menos de 1% dos 144 milhões de hectares de terrenos úmidos e representa menos de 0,5% da ocupação agropecuária do país. Já os arroios, riachos e igarapés dos altos cursos - aqueles com menos de 10 metros de largura - representam 86% da extensão dos rios e não tem interferência significativa com a produção de arroz, cultivado em várzeas amplas de rios maiores. Sobre esse vasto sistema hidrológico capilar se abaterá massiva e adversamente as consequências do afrouxamento na lei. A pequena ocupação da cultura de arroz irrigado, ou ocupação ainda menor das culturas de vazante na Amazônia, não podem justificar a redução da proteção no atacado como fora feito.
Não há, portanto, argumento científico ou do interesse agrícola, mesmo em relação a pequenas e médias propriedades, para não recompor integralmente as matas ciliares, permitindo que desempenhem seu vital papel no condicionamento das águas e proteção dos rios. Ademais, surge no horizonte valorização econômica significativa para os chamados serviços ambientais das matas naturais. Um estudo feito para o Estado da Geórgia, nos EUA, estimou em US$ 37 bilhões o valor anual dos serviços ambientais prestados por florestas preservadas em propriedades rurais naquele Estado, que é do tamanho do Acre. A lógica econômica é simples: tornar potável águas contaminadas chega a custar cem vezes mais do que aquelas servidas, cristalinas, pelas florestas naturais.
Ricardo Ribeiro Rodrigues doutor em Biologia Vegetal, é professor titular e coordenador do Laboratório de Ecologia e Restauração Florestal da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz/ USP.
Os dois autores atuaram como relatores no estudo feito pela SBPC e ABC sobre o Código Florestal
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