domingo, 26 de agosto de 2012

Primavera Árabe e inverno no Itamaraty



Marcelo Coutinho 


Vacilantes, tropeçamos demais, apoiamos ditadores em queda, perdemos parceiros, dinheiro, valores. Nos livros, seremos só nota de rodapé. Do lado errado


A Primavera Árabe aconteceu e o Itamaraty não viu. Os nossos diplomatas não souberam lidar com a situação, não apoiaram os movimentos democráticos e perderam o espaço no Oriente Médio conquistado ao longo de décadas. 

Seja qual for o nome que se queira dar, trata-se do maior acontecimento mundial desde o fim da Guerra Fria. Ninguém previu. As teorias civilizacionais que existiam até então, como as de Bernard Lewis e Samuel Huntington, afirmavam ser impossível esse tipo de coisa acontecer nas sociedades muçulmanas.

Mas depois que o processo começou, todas as chancelarias no mundo afora revisitaram seus conceitos, ajustaram suas equações e adaptaram as suas políticas externas para a região, menos o Brasil.

Nós demoramos muito a tomar uma posição. E até hoje nossa posição continua pouco clara. Vacilamos repetidas vezes. Em mais de um momento, ficamos do lado de ditadores em declínio. Assim pelo menos é como nos veem o Ocidente e os próprios revolucionários.

Os votos do Brasil no Conselho de Segurança da ONU falam muito mais alto do que qualquer palavra diplomática. Fomos tímidos em relação à Tunísia e Egito. Fomos contra a intervenção na Líbia, mesmo Gaddafi dizendo que trucidaria a população de Benghazi.

Aludimos à possibilidade de uma tragédia maior se o mundo se metesse, como se ela já não estivesse suficientemente clara. O Ministério das Relações Exteriores comprou a ideia de que a Líbia se tornaria um caos, quase que como justificando o governo de força. 

Pois bem, os líbios foram às urnas e elegeram um governo moderado. Os problemas estão longe de serem resolvidos, e muita instabilidade ainda está por vir, mas a vida naquele país está significativamente melhor. Ao menos o povo tem o próprio destino nas mãos, e começa a criar suas instituições. 

Em agosto de 2011, enquanto as tropas do Conselho Nacional de Transição se lançavam sobre Trípoli, conquistando a capital, não muito longe dali apoiávamos outro ditador. 

Chegamos a ponto de mandar uma missão à Síria que na prática respaldou o governo de Assad. Àquela altura já eram 2.000 civis mortos pela repressão, e Brasília dividiu as responsabilidades com os movimentos pela democracia. Hoje, calcula-se já 20 mil mortos. 

O Brasil perdeu "parceiros", credenciais e até dinheiro investido de empresas nacionais. O pior, no entanto, foi ter aberto mão de suas virtudes como nação democrática não colonial, signatária da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, para defender um velho cenário no Oriente Médio em ruínas. 

Na foto, junto aos revolucionários e movimentos democráticos, posaram europeus e americanos. 

O discurso do Itamaraty nesses casos foi o de não intervenção. Nem mesmo diplomatas antigos confiam mais apenas nesse princípio para a ordem internacional. Em Angola, Haiti ou Honduras, para citar alguns exemplos, esqueceram-se dele, lembrando a necessidade de não ser indiferente às conjunções críticas. 

O Itamaraty tropeçou demais. Daqui a cem anos, os livros de história vão falar dos eventos que mudaram uma parte central do mundo. O Brasil vai aparecer em uma nota de roda pé do lado errado dessas transformações. 

Primavera lá. Inverno de ideias aqui. 

MARCELO COUTINHO, 37, é professor de relações internacionais da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro)
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