segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Chacina olímpica




Roberto Pompeu de Toledo
REVISTA VEJA


No festiva de bizarrices em que consiste uma Olimpíada, a bizarrice maior estava reservada para o último dia — a prova do pentatlo moderno. Os brasileiros tiveram sua atenção despertada para essa modalidade por causa da medalha de bronze obtida por Yane Marques, uma graciosa sargenta (sim, sargenta) natural da cidade pernambucana que porta o belo e trágico nome de Afogados da Ingazeira. Parabéns, Yane. E obrigado, Yane. Ao nos revelar o pentatlo moderno, ela nos ajudou a entender a natureza profunda do festival quadrienal a que se dá o nome de Olimpíada.

O pentatlo moderno consiste numa sequência de provas de esgrima, natação, equitação, tiro e corrida. Nada mais sem pé nem cabeça, à primeira vista. E nada mais difícil de o público acompanhar e torcer, tanto pela necessidade de enfronhar-se nas regras de diferentes esportes, na maioria obscuros ao entendimento comum, quanto de manter os olhos nos diferentes palcos em que se travam as disputas. O pentatlo moderno é estapafúrdio como seria, para uma pessoa, exibir simultaneamente as habilidades de dançarino e de orador, de torneiro mecânico, de observador de pássaros e de economista. Mas começa a soar lógico quando se conhecem sua origem e seus propósitos.

A prova foi inventada pelo próprio barão de Coubertin, o fundador dos modernos Jogos Olímpicos. Segundo se aprende nas enciclopédias, é a única inventada expressamente para figurar nos Jogos. A primeira disputa ocorreu em 1912, na Olimpíada de Estocolmo, e em quinto lugar ficou um jovem soldado americano de nome George Patton, mais tarde consagrado como um dos generais que conduziram à vitória de seu país na II Guerra Mundial. Da sargenta Yane ao general Patton — o leitor captou a conexão? Se ainda não, vamos em frente. Na Grécia antiga, o pentatlo era composto de provas de corrida, luta, salto, lançamento de dardo e lançamento de disco. O propósito da série salta mais à vista do que na versão moderna: são habilidades que conformavam o soldado ideal. Além das habilidades básicas de correr e saltar, o atleta/soldado era testado no manejo de armas, como eram na época o dardo e outros objetos passíveis de ser atirados contra o inimigo, e na luta corporal.

Com o pentatlo moderno, Coubertin quis atualizar o teste do bom soldado. Hoje tal atualização soa ultrapassada: o soldado que Coubertin tinha em mente era o do século XIX. Mas permanece o caráter militar do esporte — daí Patton, daí nossa Yane, treinada por um major do Exército, e ela própria feita sargenta. E daí também a base a partir da qual nos é permitido ir além na decifração da natureza profunda das Olimpíadas. O pentatlo, junto com a maratona, que celebra a proeza do soldado grego Feidípedes, escancara, no último dia da competição, o segredo tão bem encoberto nos dias precedentes pela cantilena de paz, concórdia e espírito olímpico: Olimpíadas são guerras. E guerras pavorosas, de todos contra todos, como no pesadelo de Hobbes. Centenas de países se digladiando, cada um por si contra centenas de outros.

Sendo guerra, a Olimpíada de Londres só podia terminar, nos tempos que correm, como terminou: com a vitória massacrante das potências nucleares. As quatro principais — EUA, China, Grã-Bretanha e Rússia — ocuparam os quatro primeiros lugares, nessa ordem. Juntas, somaram 137 medalhas de ouro. Se a esse total se adicionam as onze obtidas pela França, o quinto membro do original e imbatível clube nuclear, classificada em sétimo lugar, temos 148 medalhas de ouro — só três a menos do que a metade das 302 em jogo. É uma devastação. No day after, o que temos é paisagem lunar, poeira atômica na atmosfera, cadáveres empilhados, mortos-vivos a perambular entre ruínas.

O Brasil foi tratado como um dos mortos-vivos. Os comentaristas lamentaram o que, tudo considerado, teria sido um resultado acachapante. Bem pesadas as coisas, no entanto, tem-se que o 22° lugar obtido pelo país é bem melhor do que outros indicadores de sua posição no mundo — o 84° lugar (entre 187) no IDH, ou o 57° lugar (entre 65) no Pisa, o índice internacional de avaliação de estudantes. Na guerra de Londres, o Brasil até conseguiu refugiar-se num canto do qual lhe foi possível disparar alguns tirinhos, enquanto se esquivava do pior do contágio atômico. Um problema do país, se isso é problema, é que cinco das dezessete medalhas foram obtidas em jogos de bola (vôlei e futebol) e bola não é nem nunca foi arma. É brinquedo. Só serve para entreter soldado de folga.

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