Mario Cesar Flores - O Estado de S.Paulo
Nascido na ascensão industrial do século 19 para organizar o trabalho no confronto com o capital, o sindicalismo clássico tem perdido espaço nas últimas décadas da economia da informação, dos serviços e da interação global, em que o trabalho não qualificado tende à redundância e o qualificado tem de considerar a saúde da empresa, que, se se deteriorar, desemprega (na crise de 2008-2009, o drama da General Motors evidenciou a insustentabilidade das vantagens de seus empregados, a par das imorais, de seus diretores). Em recente pleito salarial em indústria automotiva brasileira, um líder sindical declarou: "As montadoras têm condições de dar ajustes melhores." Se tinham ou não, importa aqui a lógica da premissa, ausente do serviço público brasileiro.
Apoiado no perfil estatista da cultura e da organização nacional - que confere ao serviço público o poder para o bem e o mal -, na permissividade constitucional e, em anos recentes, na conexão sindicalismo-governo, nosso sindicalismo do setor público vem se salientando por atuação distinta da ponderação do sindicalismo clássico. A questão previdenciária incomoda a simbiose sindical, por ser difícil para o sindicalismo clássico avalizar a previdência pública, radicalmente distinta da geral, mas por ora ela se mantém tranquila e o corporativismo público segue imune à crítica do sindicalismo clássico pelas agruras infligidas ao povo por suas greves - indicação do seu frágil interesse pelo "povão" amorfo, não contribuinte sindical.
Nas greves na economia privada, empresários e empregados ganham e/ou perdem, em ajustes negociados ou definidos pela Justiça. Já nas greves do serviço público, em que categorias críticas (saúde, educação, previdência, Justiça, segurança...) fazem do povo e da vida nacional (e não o empresário-patrão...) reféns de suas pretensões, o servidor pode não ganhar tudo o que pretende, mas não perde. Quem perde é o povo, castigado pelas paralisações e/ou pelo custo da rendição do poder público. Diferente da área privada, em que o pagamento por trabalho não realizado depende de decisão judicial, o poder público acaba comumente na contemporização: pagar com o dinheiro do povo os dias de serviços não prestados e de sacrifícios impostos ao povo.
Embora protegidas por estabilidade, aposentadoria integral e - com exceções, como são o magistério do ensino fundamental e médicos do Sistema Único de Saúde (SUS) - por níveis salariais relevantes no universo brasileiro - vantagens que explicam a obsessiva procura do serviço público -, as categorias com poder de pressão persistem nas reivindicações cujo atendimento as distancia ainda mais do povo. (Há sentido em proventos públicos da ordem de 50 salários mínimos? Em que democracia bem-sucedida no mundo isso ocorre?) E o fazem por vezes apoiadas em greves que se estendem ao bloqueio do acesso dos que querem exercer seu direito de não participação e até em ações violentas, como foi a invasão da Câmara dos Deputados em 17 de agosto, por agentes públicos incumbidos exatamente da manutenção da ordem!
Ainda que legais no contexto da legislação, e em alguns casos até compreensíveis sob a perspectiva das reivindicações, é natural a relutância em ver como credoras de apoio e respeito greves insensíveis ao sofrimento infligido ao povo humilde, refém e vítima impotente, como são as do INSS e do SUS. Também são merecedoras de atenção as do magistério público, comprometedoras da vida de milhares de crianças e jovens (frase de jovem universitário: "Não sei quando vou me formar, não depende de mim, depende das greves dos professores, que não estão nem aí para nós."), e as de policiais civis (as dos militares, não admitidas na Constituição, não são greves, são motins em desafio ao Estado de Direito, eufemisticamente travestidos de "paralisações"). Já tivemos greve em Instituto Médico Legal, sem que a morte cooperasse... Para enfatizar a criticidade da questão, uma conjectura: o que seria do nosso transporte aéreo se o controle do tráfego aéreo coubesse a civis organizados em sindicatos? O atual modelo militar não é o ideal e algum dia evoluirá, mas por ora o interesse público o impõe.
O direito de greve do servidor público deveria estar disciplinado por lei preconizada na Constituição de 1988, mas até hoje não formulada. Existe jurisprudência que, na ausência da lei, estende ao serviço público a legislação do setor privado, porém os efeitos de suas greves sobre o povo e a vida nacional, em geral graves, são diferentes dos efeitos das greves do setor privado sobre os empresários-patrões... O correto é formular a lei porque, no clássico dilema "a lei a serviço do poder ou para controlar o poder", nesse caso ela se impõe para controlar o poder de minorias - já razoavelmente, se não bem situadas no universo do trabalho brasileiro - de sacrificar o povo. Quando há cerca de dez anos houve a intenção de formular a lei reguladora, um dirigente sindical declarou que a regulação seria um retrocesso nas relações capital-trabalho: bobagem, ela nada tem que ver com isso, tem que ver com o povo, o serviço público e o Estado, responsável por zelar pelo povo. Impõe-se, portanto, a regulação prevista na Constituição - ou o preceito que a recomenda seria mero devaneio político, não teria sido para valer...? Não se trata de extinguir o direito, mas de racionalizá-lo; mecanismos de defesa do trabalho terão de existir, desde que protegidos os direitos do povo.
Há algo estranho quando a greve, imaginada como instrumento do jogo capital x trabalho, é desviada de sua lógica original ao substituir a ameaça ao capital pelas agruras impostas ao povo, com o poder público constrangido no seu dever de controlar o que faz mal ao povo. Essa realidade deveria preocupar os políticos, porque ela implica opção entre, de um lado, o País e o povo e, do outro, o corporativismo público.
ALMIRANTE DE ESQUADRA
(REFORMADO)
Nenhum comentário:
Postar um comentário