ESTADO DE S. PAULO
"Quem manda é a presidente, e não blocos partidários", brada o presidente do PT ante a perspectiva de criação de um conglomerado reunindo 202 deputados do PMDB, PP, PR, PTB e PSC. Se é verdade que o Brasil adota como sistema de governo o presidencialismo de coalizão, cujas dinâmica e eficácia dependem do número de partidos e de parlamentares que habitam o planeta governista, a dicotomia sugerida por José Eduardo Dutra não se sustenta. Quanto mais extensa a aliança em torno do Executivo, maior a probabilidade de seu comandante, o presidente, administrar sismos nas frentes congressuais e garantir, assim, a governabilidade. Siglas e blocos, portanto, detêm boa dose de mando na condução do País, mesmo que se reconheça a índole monárquica do presidencialismo brasileiro, que se revela avassaladora nos espaços do Legislativo. A relação de troca, esta, sim, é a medida do equilíbrio entre os dois Poderes. O presidencialismo de coalizão alimenta-se da base política e esta come do seu pasto para engordar. É assim o jogo. Aqui e alhures. Por isso mesmo, qualquer tentativa de atenuar a hegemonia presidencial por nossas bandas soa como loas à utopia.
O presidencialismo mitigado, ou um parlamentarismo à moda francesa ou portuguesa, nos termos debatidos por um grupo de juristas e cientistas sociais reunidos pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Brasília, na semana passada, não parece combinar com os traços de nossa realidade política. Sua arquitetura é mais refinada. Seu escopo, mais plural. Claro, é uma utopia a ser acalentada. É consenso que o modelo parlamentarista abriga uma coleção de adjetivos que emolduram a moderna política: avançado, racional, mais democrático, conectado à realidade, flexível, sensível à dinâmica social. Ocorre que na esfera dos costumes políticos estamos ainda no ciclo da carroça, do trem maria-fumaça, da construção das primeiras estacas éticas e morais. A semente presidencialista, como se sabe, viceja em todos os espaços, dos mais simples e modestos aos mais elevados. O termo presidente faz ecoar significados de grandeza, forma associação com a aura do Todo-Poderoso, com as vestes do monarca, com a caneta do homem que tem influência, poder de mandar e desmandar. Até no futebol o presidente é o mandachuva. O chiste é conhecido: como o ato mais importante da partida de futebol, o pênalti deveria ser cobrado por quem? Pelo presidente.
O jurista que coordena o projeto de reforma política da OAB, Luis Roberto Barroso, até pinça um episódio futebolístico para argumentar não contra o parlamentarismo (como a princípio se pode imaginar), mas contra o presidencialismo. Em 1980, no final do Campeonato Brasileiro, o Flamengo ganhou por 3 a 2 do Atlético Mineiro, em polêmica partida disputada no Maracanã. O árbitro expulsou três jogadores do Atlético, a bagunça tomou o campo e agitou os nervos. No fim, transtornado com o "resultado roubado", Elias Kalil, presidente do Atlético, exclamou aos berros:
"Vou apelar para o presidente da República, João Figueiredo! Vou falar pra ele de presidente para presidente!" O presidencialismo, tirado do coldre pelo dirigente do time mineiro, acabou transferindo para o campo parlamentarista o professor Barroso. Não se conformou ele com uso tão destrambelhado do conceito. O culto à figura do presidente e, por extensão, a outros atores com forte poder de mando faz parte da glorificação em torno do Poder Executivo. Tronco do patrimonialismo ibérico. Herdamos da monarquia portuguesa os ritos da Corte: admiração, bajulação, respeito e mesuras, incluindo o beija-mão.
O sociólogo francês Maurice Duverger defende a tese de que o gosto latino-americano pelo sistema presidencialista tem que ver com o aparato monárquico na região. O vasto e milenar Império Inca, com seus grandes caciques, e depois o poderio espanhol, com seus reis, vice-reis, conquistadores, aventureiros e corregedores, plasmaram a inclinação por regimes de caráter autocrático. O presidencialismo por estas plagas agregaria, assim, uma dose de autocracia. Já o parlamentarismo que vicejou na Europa se teria inspirado na ideologia liberal da Revolução Francesa, cujo alvo era a derrubada do soberano. Isso explicaria a frieza europeia ante o modelo presidencialista. A disposição monocrática de exercer o poder vem, no Brasil, desde 1824, quando a Constituição atribuiu a chefia do Executivo ao imperador. A adoção do presidencialismo, na Carta de 1891 - que absorveu princípios da Carta americana de 1787 -, só foi interrompida no interregno de 1961 a 1963, quando o País passou por ligeira experiência parlamentarista.
Portanto, o presidencialismo está fincado no altar mais alto da cultura política. O poder que dele emana impregna a figura do mandatário, elevado à condição de pai da Pátria, protetor, benemérito. Essa imagem ganhou tintas fortes no desenho de nossa cidadania. De acordo com o conhecido traçado do sociólogo Thomas Marshall, os ingleses construíram sua cidadania abrindo, primeiro, a porta das liberdades civis, depois, a dos direitos políticos e, por fim, a dos direitos sociais. Entre nós, os direitos sociais precederam os outros. A densa legislação social (benefícios trabalhistas e previdenciários) foi implantada entre 1930 e 1945, num ciclo de castração de direitos civis e políticos. Portanto, o civismo, o sentimento de participação ficaram adormecidos por muito tempo no colchão dos benefícios sociais. A imagem do Estado e a do governante imbricavam-se ontem como se juntam hoje, bastando olhar os mantos que vestem o presidente Lula. Sob essa configuração, imaginar que o parlamentarismo tenha chance por aqui é apostar que a fada madrinha decidiu deixar o reino da fantasia para nos visitar.
Temos de conviver mesmo com o fardão presidencialista. O que pode ser feito, isso sim, é um sistema para atenuar a força das águas que irrompem do oceano presidencial.
Mas essa é outra história.
Jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação
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