sábado, 30 de abril de 2011

Por uma revolução econômica árabe


Saifedean Ammous
Valor Econômico
  

A revolução pelo mundo árabe obrigou as populações e governos da região a lidar com a necessidade de mudança. Anos de esclerose deram lugar a uma pressão frenética por reformas para atender as aspirações e descontentamentos de milhões.

O impulso reformador, porém, segue duas direções bem opostas. Uma investida é para que os governos atendam as necessidades de sua população; a outra é para que os governos deixem de restringir a liberdade de seus povos, em particular, a liberdade econômica. O primeiro tipo de reforma provavelmente apenas exacerbará os graves problemas do mundo árabe; o segundo traz esperança de mudanças positivas e sustentáveis.

Em vários países árabes, mais notavelmente a Arábia Saudita, os governantes procuraram domar o descontentamento popular por meio de uma combinação de dinheiro, subsídios, garantia de emprego e bens e serviços gratuitos. Essa generosidade revela a falta de compreensão fundamental dos motivos do descontentamento atual, ao supor que essas causas seriam meramente materiais.

Qualquer análise das exigências e lemas dos protestantes indica claramente que não é esse o caso. As manifestações tinham muito mais a ver com a liberdade política e econômica do que com necessidades materiais, reflexo de uma consciência aguçada de que tais necessidades são apenas sintoma e consequência da ausência de liberdade política e econômica.

A "abordagem das esmolas" predominante não é sustentável e só amplificará as mazelas econômicas do mundo árabe. A solidez econômica não se cria por decreto; decorre de empregos produtivos que gerem bens e serviços aos quais as pessoas deem valor.

A "abordagem das esmolas" predominante não é sustentável e, se prosseguida, provavelmente amplificará as mazelas econômicas atuais do mundo árabe. A solidez econômica não se cria por decreto governamental; decorre de empregos produtivos que gerem bens e serviços aos quais as pessoas deem valor.

Governos que concedem benefícios não tornam seus cidadãos mais ricos ao gerar nova riqueza; simplesmente, redistribuem a riqueza existente. Isso também se aplica aos empregos garantidos e criados pelo governo: se um emprego for, de fato, produtivo, sua produção será recompensada pelos membros da sociedade que dela se beneficiam, sem a necessidade de subsídios e garantias do governo. O fato de um governo garantir um posto de trabalho significa que sua produção não é desejada. Tais empregos são um passivo para a sociedade, não um ativo.

À medida que os cidadãos começam a depender da redistribuição, desencoraja-se o trabalho produtivo e prejudica-se a criação de riqueza real. A degradação econômica entra em cena, enquanto crescem as fileiras de cidadãos dependentes, diminuem as de cidadãos produtivos e a sociedade acaba esgotando o dinheiro dos outros.

A popularidade da opção das doações, no entanto, levanta uma questão importante e instrutiva: Como as classes governantes desses países acumularam fortunas tão grandes que as pessoas clamam para que sejam redistribuídas?

As autoridades e seus aliados não se envolveram necessariamente de forma direta no roubo ou pilhagem. Por meio de uma "supervisão" e "regulamentação" aparentemente inócuas - e sob a orientação de importantes instituições financeiras internacionais -, as elites governantes conseguiram comandar setores inteiros da economia como feudos pessoais. Embora esse padrão de comportamento oficial seja repreensível, o verdadeiro desastre é que isso destruiu a iniciativa e produtividade econômica árabes.

Esse totalitarismo econômico é legitimado pela caridade governamental. Por décadas, as elites árabes engajaram-se na falsa adoção de reformas econômicas, com incontáveis remodelações ministeriais, planos quinquenais e complexos programas do Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI). Todas essas reformas, contudo, envolveram doações do governo ou oportunidades e empregos criados pelo governo; raramente se trataram de remover o domínio do governo sobre a vida das pessoas. Ao enquadrar a reforma como um debate sobre que tipo de doação deve ser concedida, os governos se abstêm de abordar o verdadeiro problema: seu controle sobre a atividade econômica.

As doações governamentais podem ser financiadas de forma confiável apenas por meio do controle de setores produtivos da economia. No mundo árabe, no entanto, como em qualquer outro lugar, isso leva ao roubo, corrupção, monopólios inibidores da concorrência, asfixia do empreendedorismo e, no fim das contas, ao inevitável declínio e decadência. Os regimes depostos na Tunísia e Egito passaram décadas concedendo doações, enquanto negavam liberdade econômica a seus cidadãos.

Enquanto os árabes se deparam com mudanças de grande abrangência, não devem ter sua atenção distraída por debates infrutíferos sobre qual o tipo adequado de apoio do governo a seus cidadãos. O que é necessário é uma transformação completa da forma como a atividade econômica se desenvolve em todos os países árabes.

Os países árabes precisam se tornar lugares em que as pessoas possam criar seus próprios empregos produtivos, buscar suas próprias oportunidades, ter condições de manter-se e determinar seu próprio futuro. Essa liberdade elimina a necessidade de caridade por parte dos ocupantes do poder e, ainda mais importante, os priva da desculpa usada para manter controle com punho de ferro sobre a vida econômica de seus cidadãos.

Saifedean Ammous é professor de Economia na Lebanese American University. Copyright: Project Syndicate, 2011.
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Assistência Médica no Sistema Único de Saúde

Adib D. Jatene

Meu ingresso na Faculdade de Medicina da usp se deu em 1948. Estou, portanto, há 62 anos sendo testemunha e participante do que aconteceu nesse período, no setor de saúde, no País. Os conhecimentos adquiridos durante a Segunda Grande Guerra agregaram um grande acervo às informações já existentes. A descoberta dos antibióticos, iniciada pela penicilina até a implantação da cirurgia intracardíaca em 1948, entre muitas outras incorporações, como a universalização da transfusão de sangue e a intubação traqueal, mudou definitivamente o setor, que sofreu ainda o impacto da corrida espacial, iniciada em 1957, com a revolução tecnológica consequente e a incorporação na medicina de um arsenal de diagnóstico e terapêutico, até então insuspeitado, que levou aos transplantes. A descrição da estrutura em hélice do dna se deu em 1953, ano da minha formatura em Medicina. 

Tive a oportunidade de participar e contribuir para o desenvolvimento das duas maiores instituições públicas de Cardiologia do País – o Instituto do Coração (InCor) e o Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia (idpc), de intensa atividade em bioengenharia – e de exercer por 38 meses o cargo de secretário de Saúde do Estado de São Paulo. Também ocupei por duas vezes o Ministério da Saúde, em um total de trinta meses, exerci por concurso o cargo de professor titular de Cirurgia Torácica e Cardiovascular, na Faculdade de Medicina da usp, e por quatro anos fui seu diretor. Tudo isso deu-me a oportunidade não só de adquirir experiência e informações, mas também de viver intensamente todas as modificações que formataram o Sistema de Saúde que estamos vivendo. Pretendo relatar essa experiência da forma mais simples e didática possível, para contribuir ao esclarecimento das dificuldades e limitações que o sistema enfrenta, desde a garantia do acesso até a formação dos profissionais de que o setor necessita, passando pelo esquema financeiro e proposta de gestão para apoiar a atividade.

Procurarei analisar a evolução histórica e as modificações que ocorreram, ressaltando os problemas de financiamento, as propostas de melhoria de gestão, bem como a formação profissional e o crônico problema da distribuição desses profissionais, principalmente junto às populações mais carentes. 

Evolução histórica. Períodos da assistência médica

Aassistência à saúde no País sofreu modificações importantes, a partir dos anos 1950. Como as maiores queixas da população são dirigidas à assistência médica, hospitalar e ambulatorial, tendo em vista a dificuldade de acesso e as filas para obtenção de exames e/ou internações, centrarei minha análise nesse capítulo, sem esquecer os avanços na prevenção da doença, na promoção da saúde e na reabilitação. Sem dúvida, o que mais incomoda a população são o diagnóstico e o tratamento tanto ambulatorial quanto, principalmente, hospitalar. Isso não significa que não se deva dar igual importância às demais profissões que atuam no setor e que são absolutamente fundamentais na formação de equipes multidisciplinares indispensáveis mesmo para a atuação eficiente do médico. Elas deverão ser abordadas com detalhes em outra oportunidade. 

Para efeito didático, podemos considerar três períodos.

No primeiro, que vai até 1960, existiam três grupos de pacientes com características nítidamente diferentes. 
O primeiro grupo era constituído pelos pacientes particulares, que remuneravam os serviços com recursos próprios. Ainda não existia a maioria das especialidades atuais. O número de faculdades de Medicina, todas públicas, com exceção da Escola Paulista de Medicina, inicialmente privada, posteriormente federalizada, limitava-se a apenas treze, e o número de médicos era relativamente pequeno. No período de 1950 a 1960, outras treze faculdades foram implantadas, sendo sete federais, três estaduais e três privadas, o que significa que 88% das faculdades eram públicas. Ocorre que, naquele período, 2/3 da população viviam no campo, o que dificultava o acesso a médico, pois as vias de comunicação eram precárias. Aquele 1/3 que habitava nas cidades somava perto de dezoito milhões de pessoas.

O relacionamento com o médico era direto e pessoal. Existia vínculo com o paciente, que era acompanhado, bem como a família, ao longo do tempo, e havia a responsabilidade de quem prestava para com quem recebia o atendimento. Os médicos visitavam diariamente os doentes em suas residências. A utilização do hospital era pouco frequente. Mesmo os partos eram realizados, em sua maioria, nas residências, e apenas situações que exigiam operação resultavam em internações. A maioria dos doentes morria em suas casas. As emergências eram atendidas pelo médico assistente nas residências. Ainda não havia serviços de emergência organizados e os eventos súbitos eram igualmente atendidos pelo médico particular, a qualquer hora do dia ou da noite.

Os hospitais privados eram geralmente iniciativas de grupos de médicos, ou de coletividades de imigrantes e seus descendentes, que ofereciam alternativa às Santas Casas. Onde existia Santa Casa vinculada a uma faculdade de Medicina e, como aí, só eram atendidos indigentes, aos professores foi permitido organizar seus serviços privados fora das faculdades. É dessa época a ideia de que os hospitais universitários deveriam destinar-se exclusivamente a indigentes, ficando proibidos de atender tanto clientela privada como previdenciária. Isso afastava os professores, na maior parte do tempo, do serviço universitário, dando origem a dupla militância, que tanto mal causa ao ensino médico. Progressivamente os hospitais privados, mantidos pelas coletividades portuguesa, italiana, sírio-libanesa, japonesa, israelita e alemã, entre outras, ao lado de hospitais pertencentes seja a grupo de médicos seja a grupos privados, foram-se diferenciando dos chamados hospitais universitários. 

O segundo grupo de pacientes era representado pelos segurados da Previdência. Eram constituídos de trabalhadores com carteira de trabalho assinada e vinculados aos institutos de aposentadoria e pensões criados durante o governo de Getúlio Vargas. Para cada grande categoria profissional existia um instituto específico. Existiam os institutos dos Servidores, dos Industriários, dos Comerciários, dos Bancários, dos Trabalhadores em Transportes, etc. Cada instituto recebia contribuição compulsória dos empregadores e dos trabalhadores. 

A contribuição compulsória destinava-se a garantir aposentadorias aos que se retiravam seja por tempo de serviço ou incapacidade permanente, e pensões para incapacitados temporários. O Estado, que além da contribuição dos empregados e empregadores deveria depositar uma terceira parcela, nunca contribuiu, mas se encarregava da cobrança e administração dos recursos. Como o número de aposentados era pequeno, os recursos, que deveriam, na verdade, constituir um fundo de pensão, passaram a ser utilizados para atendimento, não só à saúde, mas também a muitas outras ações de interesse do governo. Como a capital federal era o Rio de Janeiro, onde se encontravam as direções nacionais dos institutos, a maior parte dos recursos foram lá aplicados. É desse período a construção dos grandes hospitais da Previdência, que incorporavam toda a tecnologia da época e representavam o que de melhor existia na assistência médico-hospitalar, oferecida exclusivamente aos seus segurados. 

Esses hospitais eram mais bem equipados do que os privados. Nos outros estados, os investimentos, embora menores, com a construção de poucos hospitais próprios, permitiram convênios com as Santas Casas e hospitais privados, celebrados pelas administrações estaduais de cada instituto, para dar atendimento aos seus segurados. Isso foi dando destaque ao atendimento à saúde por parte do Ministério da Previdência, enquanto o Ministério da Saúde cuidava, principalmente, da prevenção, do combate às endemias e da vigilância sanitária e epidemiológica.

Os indigentes eram constituídos por habitantes das cidades, que nem eram segurados pela Previdência e nem tinham recursos para arcar com as despesas do atendimento e, também, por trabalhadores da zona rural que conseguissem chegar às cidades, a maioria deles sem recursos. Recorriam às Santas Casas ou a algumas poucas instituições filantrópicas e aos hospitais universitários. As Santas Casas eram entidades criadas e mantidas por membros da sociedade, para atender essa parcela da população carente. Como, até então, a tecnologia incorporada limitava-se aos raios-X simples, ao eletrocardiograma, recém-introduzido, e a alguns poucos exames de laboratório, e a medicação era muito limitada, as Santas Casas eram utilizadas especialmente para os procedimentos invasivos e situações clínicas mais graves que exigissem internação, onde os médicos atuavam como voluntários.

Ministério da Previdência e assistência médica

Durante todo esse período as atribuições sobre a assistência médica eram da alçada basicamente do Ministério da Previdência e das entidades filantrópicas. A área da saúde era incorporada ao Ministério da Educação. Quando foi separada, constituiu o Ministério da Saúde, que centrava sua ação na prevenção, no combate a endemias e na vigilância sanitária e epidemiológica. Prestava também assistência médica a grupos específicos, como moléstias infecciosas, tuberculose, lepra e doentes mentais, associada a secretarias estaduais. Além disso, em áreas carentes, havia assistência dada pela Fundação “Serviço Especial de Saúde Pública” (fsesp), depois extinta, incorporada à Fundação Nacional de Saúde. As secretarias de saúde estaduais e municipais atuavam, por sua vez, associadas ao Ministério da Saúde. A quase totalidade da assistência médica aos indivíduos era responsabilidade do Ministério da Previdência e de suas superintendências estaduais. Havia certo conflito com sobreposição de tarefas e interferência de estados e municípios com duplicação de serviços e ausência de coordenação eficiente. 

O segundo período, iniciado em 1960, trouxe um componente novo. A essa altura, o País ingressava na industrialização tardia, sob o comando de Juscelino Kubitschek, que com a proposta de “crescimento de 50 anos em 5” modificou o País. 
A implantação de grande número de indústrias internacionais nos setores automobilístico, eletroeletrônico, químico, naval, e iniciativas da grandeza da construção de Brasília produzem uma transição demográfica sem paralelo. Grandes massas de população passam a migrar do campo para as cidades, que experimentam crescimento de até 10% ao ano, um quadro que caracterizava urbanização acelerada. No passado, por exemplo, uma indústria têxtil que se implantava construía a vila para os seus trabalhadores e lhes propiciava assistência. 

Na nova fase, as indústrias que então se implantavam buscavam benefícios fiscais e garantias de fornecimento de energia, o que levou à criação dos chamados polos industriais, seja em bairros de grandes cidades, seja em municípios-satélite. O seu abastecimento de água era feito por meio de poços artesianos ao lado da indústria, enquanto não consideravam de sua responsabilidade a assistência aos empregados, que passaram a morar em condições precárias, geralmente longe dos chamados “distritos industriais”, criando o problema de transporte, educação, saúde e segurança. A solução desses problemas era transferida para os três níveis de governo. 

Por outro lado, a população se abastecia de água por meio de cisternas que conviviam, pelo tamanho reduzido dos lotes, com fossas sépticas, o que significava que a população se abastecia de água contaminada.

Sistema de pré-pagamento

É do início dos anos 1960 o aparecimento do sistema de pré-pagamento. As indústrias multinacionais, querendo oferecer aos seus empregados condições de atendimento melhores do que as ofertadas pelo sistema público, conseguiram que uma parcela da contribuição previdenciária retornasse às empresas para que contratassem grupos de médicos, que se associaram para oferecer assistência médica exclusiva aos trabalhadores e dependentes dessas firmas. Esse sistema foi rotulado como Medicina de Grupo. A forte reação da Associação Médica Brasileira resultou, ao final, na criação de cooperativas médicas chamadas Sistema Unimed.

1964, criação do inamps 

Apartir de 1964, durante o regime militar, prosperou a ideia que resultou na fusão de todos os institutos de aposentadoria e pensões em um único Instituto Nacional da Previdência Social (inps). Foram então criados o Instituto Nacional de Serviço Social (inss), que cuidava de aposentadoria, de pensões e demais benefícios, e o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (inamps), que cuidava da assistência médica. Em cada estado foi instituída uma superintendência para cada um desses dois institutos. A do inamps tinha mais recursos, inclusive mais poder que o secretário estadual, o que indicava o importante papel da previdência social no atendimento à saúde, cuja retirada, posteriormente, viria a causar um grande problema. 
À medida que o inamps fazia convênios com as Santas Casas, reduzia-se a participação da sociedade na manutenção dessas instituições, agravando a situação dos indigentes.
Foi a essa altura que se fortaleceu o movimento sanitário, que tinha entre suas bandeiras duas reivindicações incorporadas na Constituição de 1988: universalidade, que fazia desaparecer a imagem do indigente, e unificação do setor em um único ministério, no caso, o da Saúde.

Neste período, tive oportunidade de participar de duas conferências nacionais de saúde. Na Sétima Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1980, no auditório do Itamaraty, todos os participantes eram profissionais da área e técnicos da administração pública e privada. Na ocasião, fiz uma conferência tratando de “expansão dos serviços básicos em áreas metropolitanas”, programa que, como secretário estadual de Saúde, buscava implantar em São Paulo. Era a época do slogan da oms “Saúde para todos no ano 2000”, criado na Assembleia Geral realizada em 1978, em Alma Ata. Todos os secretários estaduais se envolveram nessas ações, buscando mudar a realidade do setor. Não só as autoridades de saúde nos três níveis lutavam para melhorar o acesso, mas o próprio Ministério da Previdência, que tinha atuação destacada na assistência médica aos previdenciários, buscou envolver-se até na área de prevenção, chegando a elaborar o chamado Prevsaúde, argumentando que com esse programa reduziria os casos que necessitassem de internação, minimizando as despesas com saúde. O programa não chegou a ser executado, pois se deram conta de que com melhor acesso da população e em vista da grande demanda reprimida os gastos, ao contrário de serem reduzidos, seriam ampliados.

Saúde e a Constituição de 1988

Essa luta, de vários anos, foi consagrada na Oitava Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986 no Ginásio de Esportes de Brasília, com forte participação popular. O relatório do evento serviu de base ao capítulo de Saúde da Constituição de 1988.

O terceiro período iniciou-se em 1988 com o Capítulo da Constituição, que estabeleceu a saúde como direito do cidadão e dever do Estado, devendo ser oferecida com universalidade, integralidade e equidade, com descentralização e participação de toda a população, incorporando os indigentes e os trabalhadores rurais, que passaram a ter as despesas do atendimento debitadas ao inamps, já no Ministério da Saúde. Assim, a clientela do inamps, que era limitada aos trabalhadores com carteira assinada, passou a incorporar toda a população brasileira dentro do conceito da Constituição de que saúde era direito do cidadão e dever do Estado. 

Ao mesmo tempo, a atividade foi considerada livre à iniciativa privada. Esse setor, que já possuía o sistema de pré-pagamento, com a medicina de grupo e as cooperativas médicas, ampliou-se, incorporando o seguro-saúde, a autogestão e outros sistemas correlatos, reduzindo progressivamente o contingente dos chamados clientes particulares.

Criou-se, assim, um sistema misto: de um lado, o Sistema Único de Saúde (sus) no setor público, ao qual praticamente toda a população teria acesso; de outro, o sistema privado, prioritariamente num regime de pré-pagamento, inicialmente não-regulamentado. A consequência, diante da diferença de recursos dos dois sistemas, foi que em vinte anos assistimos à transferência da liderança, que era do setor público, por meio dos seus hospitais da previdência e hospitais universitários, para o setor privado, que incorporou apenas pouco mais de 20% da população. Já o sistema público, além dos quase 80% da população, se vê na contingência de atender também demandas do setor privado, particularmente em questões de alta complexidade, que é o segmento mais oneroso do sistema. 

O sus, buscando incorporar a população de baixa renda, criou um sistema de atenção básica, o qual incorpora o Programa de Agentes Comunitários e o Programa de Saúde da Família, que já atinge quase metade da população, dividindo com o estado e municípios a responsabilidade pelo atendimento das emergências, bem como o atendimento hospitalar secundário e terciário. Esse grande aumento de clientela não foi acompanhado de esquema financeiro que lhe permitisse enfrentar tamanho compromisso. 

Dentro do sistema público de saúde o setor que mais avançou foi a da prevenção. Os programas de vacinação, que não encontram paralelo no mundo, permitiram erradicação de poliomielite, sarampo, rubéola e o controle eficaz de todas as moléstias preveníveis por vacinação. Alguns programas, como o Combate à Aids, incluindo o fornecimento universal de medicamentos, têm servido de modelo para os demais países do mundo. O sus interna mais de onze milhões de pessoas por ano, realiza mais de 400 milhões de consultas, reduziu à metade a mortalidade infantil e a mortalidade materna e tem incrementado o combate às endemias, entre elas dengue e malária. Introduziu a programação integrada com críticas ao sistema de processamento de contas, que foi altamente eficiente no combate às fraudes. Na área de medicamentos, conseguiu introduzir os remédios genéricos, a Farmácia Popular e o Dose Certa, com grande benefício para toda a população.

Financiamento

O financiamento sofreu modificações importantes ao longo do intervalo de tempo desta análise.

No primeiro período, ficou claro que as pessoas com carteira assinada tinham suas despesas cobertas pelos serviços próprios ou contratados da Previdência Social, que nem eram considerados serviços públicos. A essa altura, os hospitais universitários eram proibidos de acolher doentes da Previdência Social, porque se argumentava que eles não deveriam ser expostos aos estudantes. Apenas os indigentes eram admitidos nos hospitais universitários, para permitir o treinamento dos alunos. Pacientes segurados da Previdência que, eventualmente, buscavam a excelência que se concentrava nos hospitais universitários, eram orientados a declarar, quando perguntados, no registro do hospital, que não eram beneficiários da Previdência. Essa condição que os transformava em indigentes era indispensável para sua admissão. Os hospitais universitários que exerciam, juntamente com os hospitais da Previdência, a liderança do atendimento, incorporavam toda a tecnologia da época e serviam de modelo para o que de melhor havia de assistência no País. 

Os hospitais universitários obtinham seus recursos dos orçamentos públicos, ainda não onerados pelas demandas consequentes do acelerado processo de urbanização, que trouxe grandes massas de população do campo para as cidades que se industrializavam. 

Os hospitais da Previdência obtinham seus recursos da contribuição compulsória de empregados e empregadores. Como nesse período o número de aposentados era reduzido, sobravam recursos que foram aplicados na área de assistência social e, especificamente, na área de saúde com os grandes hospitais da Previdência, especialmente no Rio de Janeiro. Nos convênios que a Previdência mantinha com as Santas Casas eram exigidas acomodações diferenciadas. Não ocorreu a ninguém chamar o sistema de “dupla porta”. 

Os doentes privados, por sua vez, arcavam com recursos próprios com todas as despesas de atendimento, desde consultas até internações, remunerando as despesas hospitalares e as das equipes médicas. É curioso salientar que a remuneração aos médicos era, no mínimo, igual ao total das despesas com a hospitalização, e as pessoas que dispunham de recursos mesmo que tivessem direito à Previdência não a utilizavam, considerando uma diminuição. Eram outros os tempos.

Durante o segundo período, o financiamento do setor sofreu poucas alterações. A maior parte dos recursos provinha da Previdência Social, especialmente depois da fusão dos institutos e da criação do inamps. Alguns programas, como as “Ações Integradas de Saúde” (ais) e o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (suds) buscavam ampliar o atendimento a não-segurados da Previdência. Foi, inclusive, destacado recurso para criar o Serviço de Assistência Médico-Domiciliar de Urgência (samdu). 

Os indigentes, antes dispersos, agora se acumulavam, especialmente nas grandes cidades, com restrições maiores pela destinação de parte dos leitos das Santas Casas aos segurados da Previdência em números crescentes. A remuneração feita pelos pacientes privados, que antes eram custeados pelo próprio bolso, passou a ser feita de forma crescente pelos diferentes sistemas de pré-pagamento. Alguns estados e outros municípios viram-se na condição de implantar serviços básicos que atendessem as populações carentes, bem como passaram a construir e a manter alguns hospitais com recursos dos orçamentos estaduais e municipais. Isso criou certa competição com superposição de serviços malcoordenados. 

No terceiro período, após a Constituição de 1988, a situação do financiamento, portanto, agravou-se significativamente. Com a determinação de que saúde era direito do cidadão e dever do Estado, o setor público ficou responsável por cobrir os gastos de toda a população, mesmo daqueles associados aos vários tipos de convênios no sistema de pré-pagamento.

Era evidente que havia a necessidade de aumentar o volume de recursos significativamente. Os constituintes tinham estabelecido nas disposições transitórias que 30% do orçamento da seguridade deveria ser destinado ao Ministério da Saúde.

1993, Previdência cancela recursos para a saúde

Aquela altura, a Previdência Social, que chegou a destinar 30% de sua arrecadação para a saúde, tão logo o inamps foi incorporado ao Ministério da Saúde, sentiu-se desobrigada de aportar recursos para o setor, culminando, em 1993, com a retirada total de transferência de recursos para a saúde. A justificativa foi de que o número de aposentados crescia assustadoramente. De um lado, estávamos nos anos 1990 com mais de trinta anos de nossa Revolução Industrial, de outro lado, a aposentadoria dos rurais agregou alguns milhões de beneficiários. O resultado final foi o cancelamento de recursos da Previdência para a saúde, que representavam mais da metade, já que a Previdência tinha seus grandes hospitais e mantinha convênios com entidades de saúde em todo o País. 

Como se pode deduzir, houve a coincidência de um grande aumento no número de pessoas cobertas pelo setor e a perda de grande parte dos recursos até então utilizados. Para se ter ideia dos números, em 1989, os gastos federais com saúde atingiram us$ 11,6 bilhões da época, e até aí não se incorporavam os indigentes. Em 1993, os gastos federais com saúde caíram para us$ 6,5 bilhões e os indigentes já estavam incluídos, bem como os trabalhadores rurais.
Em 1995, o orçamento executado pelo Ministério da Saúde, em números redondos, foi de r$ 15 bilhões e o da Previdência, agora sem qualquer responsabilidade com os gastos com saúde, era de pouco mais do que o dobro. Em 2009, enquanto o orçamento da Saúde atingia pouco mais de r$ 52 bilhões, o da Previdência alcançava r$ 250 bilhões, portanto, quase cinco vezes mais. Isso ocorre porque o recurso arrecadado compulsoriamente é vinculado para a Previdência Social, enquanto o da Saúde disputa, ano a ano, a partilha do orçamento. Acontece que, em consequência do aumento da expectativa de vida, grande parte da clientela do sus é composta de aposentados e pensionistas, sem qualquer participação das pessoas e do Ministério da Previdência.

Como consequência, o Ministério da Saúde fica em situação difícil, pois não consegue o volume de recursos necessários para corrigir a brutal deficiência de oportunidades de atendimento tanto ambulatorial quanto hospitalar, incluindo emergência, sem falar nos serviços de reabilitação.

É oportuno ressaltar que em muitos países a contribuição compulsória é para a saúde, ficando a previdência social sob a responsabilidade das pessoas.
A criação do Finsocial, que se buscou para minimamente compor o orçamento, foi contestada como inconstitucional com os depósitos judiciais, aguardando decisão da Justiça. Em 1992, quando ocupei pela primeira vez o Ministério, e como a restrição de recursos era dramática, tentei a possibilidade de lançar mão desses depósitos. Descobri que isso não era possível pela legislação e, ainda, que não havia depósito em espécie, mas, sim, caução bancária que funcionava como garantia desses recursos. 
A ideia de buscar no orçamento de impostos o socorro considerado indispensável ficou inviabilizada pelos compromissos das outras áreas da administração. 
A consequência foi que todos os procedimentos do sus passaram a ser remunerados por valores que não cobriam o custeio. A consulta médica era remunerada a r$ 2,50, e a deterioração de toda a rede hospitalar do sus, inclusive os grandes hospitais do Rio de Janeiro, demonstra a insuficiência de orçamento para o setor público.
Enquanto isso, o setor privado, por meio dos convênios e dos recursos das pessoas, progredia assumindo a liderança, especialmente os hospitais que não atendiam o sus.
Por isso, quando voltei ao Ministério, e verificando a destinação à pasta de 22% do orçamento da seguridade, pleiteei uma nova fonte de recurso, que tinha sido extinta em dezembro de 1994. Tratava-se do ipmf, que durante os seis meses de Plano Real arrecadou mais do que no semestre anterior e sua extinção não teve qualquer impacto.
Pleiteei o recurso não como imposto que tinha anualidade e não podia ser vinculado, mas como contribuição que permitia a vinculação e entraria em vigor três meses após sua aprovação. Pretendia conseguir, ainda em 1995, o equivalente a 8% do orçamento da seguridade, que representaria um volume de recursos a aumentar, capaz de permitir desde a recuperação dos valores pagos pelos procedimentos até a erradicação do Aedes aegipti e a redução à metade do número de mortalidade infantil e materna.

Graças a manobras protelatórias no Congresso, a cpmf combatida pelas entidades patronais só foi aprovada em outubro de 1996, obrigando-nos a obter empréstimo junto ao fat, a ser pago no ano seguinte. Por outro lado, foi retirado do orçamento do Ministério parte das fontes que possuía um valor pouco maior que a arrecadação da cpmf, de modo que em 1998, eu já fora do Ministério e com a cpmf incorporada, o orçamento da pasta representava 18% da seguridade.
Em 2009, esse valor havia decrescido para 14%. Anos depois, entendi a oposição das entidades patronais. Tinha sido proibido cruzar informação da cpmf com imposto de renda. O secretário da Receita, à época, decidiu fazer uma avaliação e descobriu que, dos cem maiores contribuintes da cpmf, 62 nunca tinham pago imposto de renda. A cpmf tornou-se um poderoso identificador de sonegação. O resultado do cruzamento produziu enorme acréscimo de arrecadação que não contemplou o orçamento da saúde.

Outro problema do setor de saúde é que ele é diferente de outros setores, em que, quando investimentos são implantados, ou cessa a despesa ou começa a receita. Na saúde, tão logo implantada uma obra, começa a despesa, que equivale de duas a três vezes o que se gastou para construir e equipar. E essa despesa passa a ser permanente e crescente, diante do envelhecimento da população e da ascendente incorporação tecnológica.

Por isso, não me surpreendi quando, em 1999, estudando a distribuição dos leitos no município de São Paulo, à época com dez milhões de habitantes, divididos em 96 distritos, encontrei em 21 deles, onde viviam oito milhões de pessoas, 13 leitos por mil habitantes. Nos restantes 74 distritos, onde viviam os mais pobres, com pouco mais de oito milhões de habitantes, existiam 0,6 leitos por mil habitantes. E em 39 desses distritos, com população somada de aproximadamente pouco mais de quatro milhões de habitantes, não havia nenhum leito hospitalar. Essa situação, dez anos depois, piorou, pois a maioria dos leitos construídos na década situaram-se nos 25 distritos já com grande excesso de leitos.

Com um ministro da Saúde egresso da área econômica, foi possível resgatar proposta que dormia há pouco mais de dez anos na Câmara e vinculá-la aos três setores da Saúde. A área federal deveria crescer no mesmo percentual do pib, a área estadual destinar pelo menos 12% de suas receitas e a área municipal, um mínimo de 15% da sua arrecadação. Infelizmente, essa emenda, que tomou o número 29, ainda não foi regulamentada.

A cpmf, que no início era provisória, porque se previa que a reforma tributária seria feita em dois anos, o que não aconteceu até hoje, tornou-se permanente e a ela se acrescentou 0,18% destinado à assistência social. Porém, a saúde conservou 0,20% que lhe era concedido até então.

Quando, em 2008, o governo decidiu destinar toda a cpmf para a saúde, o que permitiria o pac da Saúde, as entidades patronais deflagraram violenta campanha para a eliminação dos tributos. O movimento foi tão eficiente que conseguiu convencer os que nunca pagaram, por não ter conta bancária e se beneficiavam do tributo, a se posicionar contra. O resultado é que o Congresso extinguiu o tributo.

Para coroar as dificuldades do setor, até hoje, dez anos depois de aprovada, a Emenda 29 ainda não foi regulamentada.

Gestão

O sistema público de gestão, que pode ser adequado a vários setores, não o é quando se trata de administrar o sistema médico, hospitalar e ambulatorial. Depende do orçamento aprovado no ano anterior, sujeito a eventuais contingenciamentos e sem flexibilidade para atender situações emergenciais. Qualquer demanda não-prevista exige autorizações nem sempre fáceis de conseguir. A eventual perda de funcionários que sejam fundamentais não permite a sua substituição imediata porque depende de autorizações das autoridades da cúpula. Tais autorizações, geralmente, são difíceis de serem obtidas, o que compromete o serviço.

Em 1958, quando Dante Pazzanese dirigia o Instituto de Cardiologia do Estado de São Paulo, que hoje leva seu nome, conseguiu convencer o então governador Jânio Quadros de que eram necessários recursos extraorçamentários. Foi, então, autorizada a criação do Fundo de Pesquisas, como conta bancária, administrada pelos diretores da entidade e não-orçamentado. 

Esse fundo captaria recursos pelos serviços prestados e por doações. Todo ano o Diário Oficial publicava os valores cobrados pela clínica privada dos vários procedimentos realizados pela instituição. O serviço social classificava os pacientes em seis categorias. A categoria A não pagava nada, a C pagava integral e as quatro categorias B pagavam, respectivamente, 10, 20, 40 e 60%. Esse recurso, incrementado por eventuais doações, era aplicado principalmente em pessoal, seja suplementando salários para conseguir dedicação exclusiva, seja financiando viagens de estudos, bem como atendendo situações emergenciais não-previstas no orçamento. O Fundo logo assumiu papel da maior importância, contribuindo para eficiência administrativa do icesp (Instituto de Cardiologia do Estado de São Paulo), que logo foi copiado pelos demais institutos das secretarias da Saúde e da Agricultura, com resultados muito satisfatórios em todos os casos. O resultado foi agilidade, eficiência na administração e evidente aprimoramento da gestão.

Na segunda metade dos anos 1980, a Secretaria da Fazenda promoveu reforma administrativa, que se considerava perfeita, tornando desnecessários os fundos de pesquisas, que foram extintos.

Em seu lugar, foi criado o Fundo Especial de Despesa, com duas diferenças fundamentais: obrigava a orçamentação e proibia aplicação em pessoal. Foi iniciativa infeliz, porque transformava o fundo em órgão arrecadador e anulava toda a flexibilidade obtida. Tive a oportunidade de participar, com todas as instituições de pesquisas, de audiências públicas na Assembleia Legislativa, na tentativa frustrada de recriar os fundos de pesquisa.

Quando o professor Zerbini criou o InCor, propôs o mecanismo da Fundação de Apoio para ajudar na gestão de instituições de alta complexidade, cujos pleitos fundamentais para conseguir eficiência não podiam depender de uma burocracia, geralmente lenta e imobilizante. Algumas unidades da usp criaram fundações de apoio, que conquistaram adeptos entre hospitais universitários e institutos de pesquisa, com grande sucesso. Estranhamente, surgiram movimentos que pretendem eliminar esse instrumento, que tem-se mostrado altamente eficiente no aprimoramento da gestão.

Outro mecanismo criado que provou ser eficaz foi o contrato de gestão, em que o recurso fornecido se vincula a metas que devem ser atingidas.

Na administração Mário Covas, decidiu-se terminar 16 grandes hospitais cujas obras estavam interrompidas, muitas apenas com as fundações executadas. O secretário José da Silva Guedes pleiteou, e conseguiu, que a Assembleia autorizasse a entrega da administração a entidades filantrópicas, com atuação no setor há pelo menos cinco anos e comprovada eficiência sob contrato de gestão.

Após mais de dez anos de experiência, este sistema, chamado Os (organizações sociais), mostrou o acerto da iniciativa. Hoje, não apenas os hospitais novos, mas inclusive os já existentes, estão sendo cuidadosamente transferidos para a administração privada, seja para os ou oscip, criados por Bresser Pereira quando ministro da Administração.

Essas Parcerias Público-Privadas estão submetidas a algumas regras da administração pública, mas incorporam aspectos da iniciativa privada. Apenas como exemplo: a seleção de funcionários se faz por concurso público, mas a admissão é feita pela clt, que permite a dispensa dos que não demonstrarem aptidão e imediata contratação de substituto, como de resto se submetem todos os trabalhadores brasileiros.
Encontra-se no Congresso Nacional, em tramitação, um projeto sobre criação da Fundação Pública de Direito Privado.

O argumento manejado, inclusive por pessoas da área, de que não faltam recursos e os problemas são de gestão deve ser rechaçado com ênfase. É muito difícil ser eficiente na gestão quando há flagrante desfinanciamento.
De qualquer forma, as várias soluções que estão sendo buscadas mostram o interesse do setor, que, enfrentando esquema financeiro sabidamente insuficiente, tem conseguido avançar buscando a eficiência possível, que tem permitido melhorar os índices de saúde.

Deve ser ressaltado que as contas das associações público-privadas são auditadas pela Secretaria Estadual, aprovadas por Comissão de Avaliação, e encaminhadas ao Conselho Estadual de Saúde e à Assembleia Legislativa para apreciação pelo Tribunal de Contas.

Formação profissional

Existe ideia equivocada quanto ao número de médicos existentes no País. Mesmo pessoas da maior responsabilidade afirmam que o número de 1,6 médicos por mil habitantes ultrapassa o número que citam como sendo da oms de um por mil. Eu mesmo já utilizei equivocadamente esse número no passado. Na verdade, com o desenvolvimento científico e tecnológico, temos de admitir que há falta de médicos no País.
Comparando com outros países, o número de 16 médicos por dez mil pessoas é absolutamente insuficiente. Nos eua e no Canadá, esse número é de 22 por dez mil. Na Europa Ocidental, são 32 por dez mil; na Argentina, 32, e no Uruguai, 38, para não citar Cuba, onde o número é 62 por mil habitantes.

Qualquer que seja a comparação, existe falta de médicos. Isso não significa que devamos aceitar que se lancem no mercado médicos malformados, sem experiência em emergência, entre outras deficiências, egressos de faculdades que não possuem infraestrutura médico-hospitalar e ambulatorial, flagrantemente incapazes de preparar o profissional de que o País necessita. Por isso, a Comissão de Especialistas, recriada pelo mec para assessorar a Secretaria do Ensino Superior (sesu), colocou como condição eliminatória para solicitação de abertura de novo curso que a entidade possuísse complexo médico-hospitalar e ambulatorial, funcionando há pelo menos dois anos como referência regional, com residência médica e número de leitos igual a cinco vezes o número de vagas. Deve ainda possuir atendimento ambulatorial desde a atenção básica até ambulatórios de especialidade, que permitam não apenas aquisição de conhecimento, mas também de habilidades com formação ética, que coloque a profissão como um serviço capaz de ajudar pessoas que sofrem a se sentirem melhor. 

Até 1960, possuíamos 27 escolas de medicina, das quais 21 federais, três estaduais e três privadas. Dessas três privadas, duas eram de Universidade Católica, sendo uma em Sorocaba e outra em Curitiba.

De 1960 a 1988, segundo período, foram criadas 55 faculdades de medicina, sendo 29, portanto mais da metade, privadas, e 26 públicas, distribuídas em quinze federais, nove estaduais e duas municipais.

Dentro do terceiro período, que se iniciou em 1988, excluídas duas faculdades englobadas no período anterior, chega-se a 1996 com 82 cursos médicos. A partir desse ano até o presente, foram criadas cem novas escolas de medicina, assim distribuídas: 76 privadas, 24 públicas, das quais 14 federais, nove estaduais e uma municipal.

É quase impossível acreditar que foram criadas em tão curto intervalo de tempo cem faculdades de medicina, das quais 76 privadas. A maioria delas não possui complexo médico-hospitalar e fazem convênios com hospitais assistenciais, na maioria públicos, adaptando precariamente estrutura docente. Várias dessas escolas não têm acesso a serviço de emergência.

A formação precária não permite preparar o profissional de que o País necessita. Deve-se assinalar que, depois de formados, boa parte não tem acesso a vaga de residência médica e, portanto, entram no exercício profissional, especialmente em plantões de emergências e em ambulatórios. 

A distribuição dos médicos no território nacional deve ser objeto de preocupação, não apenas nos pequenos municípios do interior, mas principalmente na periferia das grandes cidades e nas regiões metropolitanas, onde há uma inacreditável concentração nas áreas mais ricas e antigas.

A constatação da existência de um médico para 127 habitantes em Vitória, um para 180 no Rio de Janeiro, um para 213 em São Paulo, não significa que a população esteja servida de maneira adequada, porquanto em grandes áreas onde se concentra a maior parte da população não existem nem leitos hospitalares, nem médicos.

Médicos e consciência social

É necessário que se corrijam as deficiências gritantes, que se monte estrutura hierarquizada e regionalizada capaz de oferecer ao profissional médico que a população reclama suporte técnico, progressão na carreira e remuneração, simplesmente como complemento para atraí-lo. Infraestrutura capaz de lhe dar cobertura e ensino continuado devem ser considerados fundamentais.

Talvez se deva pensar em serviço civil obrigatório por dois anos, depois de formado, como pré-requisito para residência médica. Com isso estabelecido, as escolas treinariam o médico para atender a população, sem ficar na dependência da alta tecnologia, que devem conhecer. A alternativa atual de direcionamento precoce para especialidades e subespecialidades é inaceitável.

Com isso, talvez, nossos futuros especialistas, que tiveram contato com a realidade da população, quando se diferenciassem, teriam uma consciência social, que lhes falta hoje.

A utilização indiscriminada da tecnologia atual, associada a baixa remuneração médica, tem levado a altos gastos com exames, muitas vezes desnecessários, e reduzida a atenção que o médico deve dedicar ao seu paciente.


Adib Jatene é médico, professor emérito Faculdade de Medicina usp (fmusp) e diretor-geral do Hospital do Coração.

Internacionalização do Ensino Superior - Invasão de Farmacêuticas ou de Marcianos?


O tema da mundialização é recorrente na imprensa atual. Desperta paixões, iras e até mesmo tédio, pela repetição das mesmas idéias. Há boas razões para crer que vivemos uma onda de globalização, gostemos ou não. Não é a primeira e, provavelmente, não será a última. 
A indústria farmacêutica brasileira foi quase totalmente desnacionalizada, tornando-se um apêndice dos grandes laboratórios internacionais. Se antes havia muitas empresas puramente brasileiras, pouquíssimas sobraram depois da invasão. Hoje – afora as públicas – o mercado é totalmente dominado pelas grandes multinacionais da farmácia.
Em 1938, Orson Welles dirigia um programa de rádio. Inspirado pelo livro de H. G. Wells, A Guerra dos Mundos, armou uma brincadeira. Seu programa foi conduzido como se uma invasão de marcianos estivesse ocorrendo em Nova Iorque. As notícias tinham o tom dos noticiários de guerra, ressoando no imaginário popular. Os moradores da cidade se assustaram. Muitos fugiram em pânico, criando grandes congestionamentos de trânsito. Até que a farsa fosse plenamente revelada, foi um tremendo susto. 
A imprensa nacional anuncia com certa preocupação a entrada de universidades estrangeiras no Brasil. O MEC reage, propondo leis restritivas à desnacionalização do ensino superior, como existem para hospitais e para a imprensa. O que está por acontecer? Algo parecido com o que ocorreu na indústria farmacêutica? Ou é outra invasão de marcianos, ao estilo de Orson Welles?
Há temores difusos. Estaríamos sendo sub-repticiamente invadidos pela matriz cultural de outras sociedades? Perderíamos nossa autonomia para gerir nossa educação superior? Ou tudo não passaria de uma questão mercadológica, as empresas estrangeiras possuindo vantagens competitivas sobre o capitalismo caboclo e o emperrado setor público? Ou ainda, seria mais uma Batalha de Itararé?
O presente artigo explora o tema, tentando entender o que está acontecendo a partir do que se sabe. Antecipando as conclusões finais, parece que a ameaça está mais para marciano do que para farmacêutica. Ainda assim, o tema da internacionalização não é um assunto de somenos importância, pois talvez o excessivo isolamento do país seja o problema mais grave.

O que pode significar “internacionalização”?

Como costuma acontecer, mesmo na imprensa de primeira linha, algumas palavras podem adquirir um sentido meio mágico, meio maldito. “Internacionalização” é uma delas. Quer dizer o quê? Sem explorar os significados possíveis, não avançaremos muito. Na verdade, é importante reconhecer que pode querer dizer muitas coisas diferentes, algumas bem-vindas, outras não. Na presente seção, apresentamos alguns significados possíveis, sem discutir se são plausíveis – o que será feito mais adiante.

Universidades estrangeiras comprando ou criando unidades no Brasil

O noticiário da imprensa – e sua reverberação no mundo universitário – traz denúncias de um iminente take-over das universidades e faculdades brasileiras por contrapartes estrangeiras. Nos cenários catastróficos desenhados, em pouco tempo não haverá ensino legitimamente brasileiro e, quem sabe, ideologias alienígenas serão sub-repticiamente implantadas?
Grupos financeiros internacionais investindo no ensino?
Nesse segundo cenário, investidores estrangeiros verão com olho gordo o mercado universitário brasileiro e decidirão investir aqui, abrindo escolas ou comprando outras já existentes. Da mesma forma que compram telefônicas ou fábricas de sorvete, sairão à busca de bons negócios no ensino. Instituições brasileiras com donos fora do Brasil
Outro cenário plausível é que os próprios brasileiros ofereçam ações de suas instituições de ensino nos mercados financeiros internacionais. De fato, universidades e faculdades com mais dinamismo já abriram seu capital, para acelerar crescimento. Como há amplos recursos disponíveis no exterior, oferecidos a juros baixos nos grandes centros financeiros, instituições de ensino brasileiras estão tentando lançar seus papéis no exterior. 
Cursos de Business abrindo filiais ou licenciando seu nome no Brasil
Basta dirigir em uma grande capital para ver nos outdoors os anúncios de cursos de business associados a universidades estrangeiras, alguns de primeira linha. Muitos MBAs dão a impressão de serem importações dos Estados Unidos.

Alunos brasileiros fazendo cursos à distância em programas estrangeiros

Com a disseminação da internet, é possível e até fácil matricular-se em um curso da Open University inglesa. Ou em algum dos milhares de cursos à distância oferecidos por universidades dos Estados Unidos. Instituições menos famosas, em geral, em países de língua espanhola, fizeram convênios com contrapartidas brasileiras, ainda menos famosas. 
Instituições brasileiras comprando 
ou abrindo unidades no exterior
Internacionalização vale também na outra direção. Nos últimos anos, as empresas brasileiras começaram a sair do país e operar pelo mundo afora – e até com sucesso. Por que isso não aconteceria também no ensino superior? 
Observadores do nosso ensino superior privado registram avanços significativos em várias direções. Por exemplo, há a profissionalização da gestão, o desenvolvimento de técnicas administrativas e de controle informatizado dos processos. Há avanços no marketing educativo e em algumas outras competências. Em casos menos freqüentes, há um início de estruturação do ensino e de preparação de materiais escritos sob medida, bem como uma crescente preocupação com a sala de aula. 
Diante de uma situação de maior atraso em vários países da América Latina e nos países africanos de língua portuguesa, é só questão de tempo para que alguma instituição se aventure para fora de nossas fronteiras. Ou, então, que vá para os países em que há um número expressivo de emigrantes brasileiros. Mas isso ainda está por acontecer.

Quem seriam os “invasores” internacionais?

Antes de construir teorias conspiratórias ou alarmistas, é instrutivo examinar o panorama do ensino superior em países que poderiam ter algum interesse em investir no Brasil. Façamos uma volta ao mundo, à vol d’oiseau.
Comecemos pela Europa que, por muitos anos, foi nossa matriz intelectual. O que encontramos lá é um quadro muito homogêneo, onde há uma predominância absoluta de universidades públicas. De fato, países como a França praticamente não têm universidades privadas. As poucas que existem são as católicas, com uma presença muito restrita e dando poucas mostras de dinamismo. Na Bélgica há também católicas. Na Alemanha, praticamente nada. Ainda menos nos países escandinavos. 
A Inglaterra é o único país em que poderíamos encontrar alguma coisa. Mas instituições privadas com ânimo de lucro e dinamismo não parecem encontrar solo fértil em parte alguma do Velho Continente. Não vemos lá instituições privadas e voltadas para o lucro que pudessem ter interesse em expandir suas operações para fora do país. Repare-se que Inglaterra e França não exportaram suas universidades para as colônias e ex-colônias, com as quais, por longos anos, mantiveram relações muito próximas. 
Na Austrália, há algumas universidades com o ânimo de expandir-se para fora do país. De fato, alguns observadores consideram ser esse país o mais agressivo em sua intenção de investir em outros mercados. O exemplo mais rematado é a Monash, que até já abriu filiais em Londres. Mas, para elas, o mercado mais apetitoso são os países asiáticos. São dinâmicos, mais próximos e neles o inglês é uma língua de trabalho. Não parece razoável que se interessem por um país distante como o Brasil, desconhecido e dominado por legislação complexa e frondosa. 
Restam os Estados Unidos, onde começam a aparecer universidades com fins de lucro. Nos últimos anos, tiveram um crescimento espetacular. Se uma invasão ao Brasil está em gestação, terá que vir dos Estados Unidos, pela quase completa ausência de instituições com vocação internacional em outras regiões. 
Portanto, vale a pena examinar melhor o cenário americano. As universidades públicas são todas estaduais (à exceção das três federais, operadas pelas forças armadas). Sua dependência administrativa e financeira aos estados significa que cruzar as fronteiras pode não ser tão simples. A Universidade de Maryland fez algumas excursões fora, mas foi para atender às tropas americanas estacionadas em outros países. O presidente da New York University exigiu uma doação de cinqüenta milhões de dólares do governo do emirado árabe de Abu Dabi, antes de considerar seriamente a proposta de abrir lá algum tipo de campus. Michigan State University e o Rochester Institute of Technology também estão criando programas nos países do Golfo. A Georgia Tech considera a possibilidade de abrir um campus na Índia, mas não aceitaria imposições locais sobre currículos e estilos de funcionamento. Com certa cautela, podemos afirmar que as universidades de primeira linha não aceitariam restrições sérias ao funcionamento de campi fora do país, se isso implicar mudança dos modelos usados na sua sede. De fato, as entidades que credenciam o ensino superior americano não aceitam que o ensino seja oferecido em outras línguas que não o inglês.
Os exemplos acima são sugestivos de uma onda de expansão, mas devem ser matizados pela enorme variedade de legislação entre estados americanos. Independentemente de poder abrir ou não no exterior, o fato observado é que há mesmo sérias limitações para a expansão para outros estados do próprio país. Há até mesmo barreiras, impedindo que – dentro de seus próprios campi – financiem atividades que não beneficiam diretamente o próprio estado.
Um terço do total das matrículas é de responsabilidade do tipo de universidades privadas que no Brasil chamaríamos de “comunitárias”. De resto, entre elas estão as mais famosas, como Yale, Harvard, Princeton, Chicago e várias outras. Foram fundadas por grupos locais de natureza filantrópica ou religiosa. É difícil dizer se haveria impedimentos legais ou administrativos para que operem campi fora do país. Mas o fato é que, se o fazem, é de forma muito restrita. Nem sequer operam em outros estados. O que se observa aqui e ali é a oferta de cursos curtos, em geral, de pós-graduação.
Observou-se um arranjo recente de instituições da Índia com universidades americanas. Diante das dificuldades legais para abrir universidades na Índia, grupos menores criam as chamadas “academias”, que são cursos superiores oficiais. Tais academias recrutam e preparam seus alunos por dois anos, adequando seus currículos às exigências usuais dos Estados Unidos. Em seguida, os alunos são aceitos em universidades americanas com as quais têm convênios, cursam os dois anos restantes e ganham um diploma americano. Lucram as indianas, por conseguirem operar sem credenciamento. Porém há um controle de qualidade implícito na necessidade de que seus alunos obtenham nos Estados Unidos resultados satisfatórios. As americanas lucram por receberem mais estudantes (num momento em que há excesso de capacidade no sistema universitário). Há um bom número de arranjos desse tipo, inclusive com instituições prestigiosas americanas. 
Resta mencionar, portanto, as universidades americanas com objetivo de lucro. Hoje, a matrícula em tais instituições já está por volta de 7% do total. Se considerarmos que são da ordem de quinze milhões os alunos em programas pós-secundários, estamos falando, no máximo, de um milhão de alunos. 
O primeiro aspecto a ser notado é a concentração das instituições com objetivo de lucro nos cursos técnicos de curta duração. A principal razão para isso é a existência de bolsas e subsídios federais para os alunos de tais cursos. Grande parte delas é de pequeno porte, atendendo a clientelas locais. Aliás, tais cursos são um foco constante de denúncias de mau uso de recursos federais. Várias já foram fechadas.
As instituições grandes são a exceção. Devry (de Chicago) seria uma delas. As outras grandes universidades com fins de lucro são bem conhecidas. Duas se destacam nesse cenário. Uma é a Laureate, pertencente a uma empresa que se especializou inicialmente em aulas particulares para alunos pobres (financiadas por fundos federais). A outra é a University of Phoenix, de crescimento meteórico nos Estados Unidos, já se aproximando de duzentos mil alunos. Recentemente, foi alvo de críticas de jornais prestigiosos (no caso, o New York Times), por se haver descuidado da qualidade.
Portanto, quando pensamos no universo das grandes instituições com fins de lucro que teriam alguma propensão para migrar para o Brasil, a oferta é muito limitada. São três ou quatro, no máximo.
Obviamente, grupos financeiros podem interessar-se pelo mercado brasileiro, sem ter uma experiência prévia em educação. Mas não se vislumbram no horizonte situações desse tipo. Afinal, trata-se de um mercado novo, pois instituições educativas com fins de lucro são ainda muito raras. Possivelmente, o Brasil é um dos países que mais as têm. Investidores de outras áreas não se mostraram propensos a entrar num mercado tão desconhecido. 

Modalidades de Internacionalização

Feita a primeira aproximação do problema, vejamos o que está ocorrendo concretamente em cada uma das principais modalidades de internacionalização mencionadas na parte inicial deste artigo. 

A entrada de universidades estrangeiras no Brasil

Nos últimos anos, ao aportarem no Brasil, as universidades americanas com objetivo de lucro vão encontrar um mercado onde tal estilo de funcionamento já é mais do que conhecido. Não é novidade. Aliás, com uma proporção de 48% do ensino superior privado em mão de instituições com objetivo de lucro (e 43% de todas as instituições), o Brasil avançou muito mais do que os Estados Unidos, onde a proporção ainda é de 7%. 
De fato, nesse particular, nosso ensino privado está à frente das novas tendências. Duas instituições importantes, Anhangüera e IBMEC, têm ou tiveram por trás bancos de investimento. Isso ainda não ocorreu em outros países. 
A partir da virada do milênio, as duas grandes universidades americanas com fim de lucro (Phoenix e Laureate) começaram a procurar instituições brasileiras com as quais se pudessem associar. Como bem sabem aqueles familiarizados com a situação contábil e financeira do ensino superior privado, há uma grande diferença entre o número de instituições dispostas a uma associação ou venda e o número delas que tem uma situação contábil suficientemente clara e correta. 
Estima-se que há da ordem de seiscentas instituições privadas que poderão ser oferecidas para venda ou que não têm condições financeiras de solvência. Contudo, poucas delas se sairiam bem num processo de perícia contábil (due diligence) feito por uma auditoria internacional. De fato, além dos problemas de dívidas fiscais e outras, há ou houve a prática de “caixa dois” e outros procedimentos menos ortodoxos para mascarar a distribuição de lucros. Sendo assim, as buscas têm-se afunilado e relativamente poucas se revelaram prontas para receber sócios ou serem vendidas. 
A primeira transação desse tipo foi com o grupo Pitágoras (onde o autor do presente artigo trabalha). Depois de mais de três décadas no ensino fundamental, houve uma decisão, ao fim dos anos 1990, de entrar no ensino superior. Ao mesmo tempo, buscou-se um aporte de capitais externos, para permitir um crescimento mais rápido. Apollo International, o braço externo do grupo holding da University of Phoenix, entrou com 50% do capital para a criação da Faculdade Pitágoras, inicialmente, com um campus em Belo Horizonte e outro em Ipatinga.
Por coincidência, o projeto da Faculdade Pitágoras permitiu encaixar como uma luva muitas das inovações da sala de aula desenvolvidas por Phoenix, caracterizadas por um foco muito prático, traduzido no lema “você usa amanhã o que aprende hoje”. Por outro lado, no que tange ao currículo, o do Pitágoras foi claramente influenciado pelo ensino americano, mas rigorosamente nada pela filosofia de Phoenix. Isto é, inspirou-se na tradição americana de incluir quase dois anos de formação científica e humanista (em contraponto com os currículos profissionalizantes de origem francesa que o Brasil vinha adotando por muito tempo). Por haver participado desse processo desde o planejamento, não sou um observador neutro. Mas julgo oportuno fazer esse comentário, por pertencer à essência do que está em discussão no presente ensaio. Resumindo, o Pitágoras adaptou algumas práticas de sala de aula, mas renegou a orientação imediatista de Phoenix, desenvolvida para lidar com outro perfil de alunos. 
Durante quatro anos, a sociedade se manteve, beneficiando-se da experiência e das idéias trazidas dos Estados Unidos. Contudo, a Apollo resolveu desfazer a sociedade com o Pitágoras, pois precisava de uma operação muito maior do que seria possível numa faculdade que começava do zero. Desde o princípio, o grande objetivo da Apollo International seria um IPO (abertura de capital) na NASDAQ. Para isso, necessitaria de um volume muito substancial de alunos, para que a operação fosse aprovada pelo mercado financeiro. Pelos seus planos, as operações na Índia, Alemanha e Holanda, mais as futuras operações na China e no México garantiriam esse número. Por razões que não cabe especular aqui, nenhuma dessas iniciativas prosperou. 
Ficando apenas no Brasil, a Apollo decidiu vender ao próprio Pitágoras a sua parte e comprar uma universidade de grande porte. Depois de negociar por longo tempo com a Estácio de Sá, a compra não se materializou. Circulam notícias na imprensa de um entendimento com a Unip, mas ainda não há fatos concretos. Portanto, para todos os efeitos, a Apollo internacional está fora do Brasil. 
O caso da Laureate é bastante diferente e reflete a filosofia da instituição. Interessante notar que nos Estados Unidos suas operações não são no ensino superior. Os dois jovens executivos da Laureate não são da área de educação e não pretendem conhecê-la. São investidores que conhecem educação apenas como negócio. Assim sendo, escolhem com muito cuidado e só compram instituições sólidas, lucrativas e bem administradas. 
Com base no que se observou na Espanha e no Chile, onde compraram universidades, mantêm a mesma administração anterior e não interferem na condução dos negócios e do ensino. O único que fazem é criar mecanismos eficazes de acompanhamento econômico e financeiro. Em outras palavras, compram times vencedores e acreditam que em time vencedor não se mexe (além disso, não saberiam mexer). O caso mais recente da Anhembi-Morumbi, comprada pela Laureate, parece confirmar esse estilo administrativo. 
A Whitney International University System é uma universidade de porte menor, operando apenas fora dos Estados Unidos. Recentemente, comprou a Faculdade Jorge Amado, na Bahia. 
Fala-se na entrada do Devry Institute of Technology, uma instituição que oferece cursos técnicos de alta qualidade nos Estados Unidos. Também se ouve falar de grupos americanos menores, interessados em compra ou associação com algumas faculdades e universidades brasileiras. Mas ainda é cedo para fazer prognósticos. Fica aqui apenas a nota de que as duas maiores universidades com fins de lucro já estão ou já estiveram no Brasil. Com a saída da Apollo e a compra de parte do capital da Anhembi-Morumbi pela Laureate e mais a participação da Whitney, é da ordem de 52 mil o total de alunos estudando em instituições em que, pelo menos, parte do capital é estrangeiro. Diante de pouco menos de cinco milhões de alunos em cursos superiores, estamos falando de 1% da matrícula, uma gota d’água. 
A discussão sobre a invasão das universidades norte-americanas faz parte de um debate maior que poderia ser posta nos seguintes termos: se a globalização produz o “carro mundial”, haverá uma “educação mundial”?
Em “Looking for a flat world university?”, publicado no The Chronicle of Higher Education, de 6 de fevereiro de 2008, o educador americano Bob Zemsky pergunta se num “mundo plano”, onde proliferam os carros mundiais, a educação não passaria também a ser um produto desenhado e produzido em linhas de montagem, igual em todos os países? 
A pergunta é legítima. Contudo, isso não está acontecendo de forma significativa no ensino americano. Isso porque o sistema de ensino superior americano cresceu lentamente, ao longo de quase quatro séculos. Com a transição demográfica, há vagas ociosas por todos os lados, exceto nas pouquíssimas universidades de elite. Como há condições de oferecer um ensino artesanal e ministrado por um estoque gigantesco de mestres e doutores, as pressões de mercado para gerar um produto “industrial” são muito reduzidas. Ademais, as reduções de custo de tal modelo são limitadas (de fato, o modelo de Phoenix traz reduções de custo bastante modestas). É totalmente diferente da indústria automobilística em que somente após a implantação das linhas de montagem por Henry Ford tornou-se possível a popularização dos automóveis. 
Como a única matriz de exportação de ensino superior para o Brasil estaria nos Estados Unidos, não parece razoável que possa exportar um produto que o próprio país não desenvolveu e utilizou de forma significativa. Ou seja, se vai desenvolver-se no Brasil um ensino mais padronizado, não há bons modelos para tal em outros países. Teria que ser uma construção cabocla. 
Abertura de capital em grupos brasileiros 
Em contraste com a modéstia das operações de universidades estrangeiras no Brasil, uma nova tendência toma corpo de forma muito rápida. Trata-se da abertura de capital de instituições de ensino inteiramente brasileiras. Algumas das mais agressivas abriram o seu capital recentemente. Com os recursos obtidos, têm planos ambiciosos de expansão.
A primeira delas foi a Anhangüera, tendo como forte acionista o Banco Pátria. Veio em seguida o Pitágoras e depois a Estácio de Sá. O COC está em processo de abertura. 
Os lançamentos se deram através da Bovespa, mas os títulos foram comercializados tanto no Brasil como nas praças financeiras americanas e européias. Note-se que o capital votante em mãos de investidores estrangeiros é muito reduzido. Portanto, são nulos os riscos de um take-over externo. 
Não obstante, a abertura de capital reduz em muito a área de manobra do grupo executivo. Ao colocar à venda os papéis, é também oferecido um plano de expansão com metas muito detalhadas. Sabidamente, os bancos acompanham muito de perto o cumprimento das metas. Mas, para a tranqüilidade dos mais conspiratórios, não há qualquer indício de que os bancos tenham algum interesse nos processos de ensino ou na filosofia da instituição. 
Há claramente um cenário de concentração em um setor que se vinha mantendo bastante fragmentado até o momento, com uma grande predominância de instituições com menos de mil alunos. Tal mudança é exatamente o que sempre se observou em outros setores da economia. 
Salvo um revés na economia mundial, ainda há várias instituições brasileiras mais dinâmicas que poderiam pensar em também abrir capital. No momento, as instituições de capital aberto matriculam cerca de 260 mil alunos. Digamos que, com o seu crescimento e com o aparecimento de quatro ou cinco processos de abertura, esse número possa dobrar ou triplicar. Seriam da ordem de um milhão de alunos ao final da década. É 16% da matrícula total. Ou seja, a concentração, cujas tendências já se observam, está longe daquilo que já ocorreu em outras indústrias – como a farmacêutica e a informática.

Acordos de cooperação com universidades estrangeiras

Devemos lembrar-nos de que, pela via de cooperações internacionais, o Brasil teve profundas e positivas contribuições para o seu ensino superior. A primeira e talvez a mais importante foi com universidades francesas, italianas e alemãs, na época da criação e consolidação da USP. 
Na década de 1940, houve um memorável acordo da Aeronáutica com o Departamento de Engenharia Aeronáutica do MIT, levando à criação do ITA. Sem tal cooperação técnica, não haveria nenhum cenário plausível para uma indústria aeronáutica e aeroespacial no país. 
Em suma, algumas matrizes intelectuais européias e norte-americanas chegaram ao Brasil por via de acordos de cooperação entre nossas universidades e contrapartidas desses países. A partir dos anos 1960, o envio de brasileiros para estudar no exterior, em grande medida, substituiu a vinda de professores estrangeiros, dando uma incalculável contribuição para o desenvolvimento da pós-graduação e da ciência brasileira.
Contudo, há um grande contraste entre esse quadro e os cenários das universidades estrangeiras com fins de lucro que já chegaram ao Brasil. Na verdade, quase nada trouxeram para o cenário educativo que seja digno de nota. Citaríamos apenas algumas inovações em sala de aula, trazidas pela Apollo – que já se retirou. Se vier a Devry, podemos esperar cursos votados para ocupações técnicas muito práticos e próximos do mercado. 
No todo, em grande medida, o dinheiro vem de mãos abanando, sem trazer novidades ou ingerências. No campo do ensino, não trazem nada de ruim, pela mesma razão que não trazem nada de bom. 
Porém, como estamos falando de um setor onde predominam iniciativas privadas, as universidades estrangeiras podem trazer novos padrões de eficiência administrativa e financeira, forçando às congêneres caboclas a melhorar seu desempenho. Foi isso que ocorreu com os supermercados brasileiros, diante da ameaça do Carrefour. 
Resta lembrar um caso mais específico, que são os cursos de business, onde há um ir-e-vir internacional muito ativo. Contudo, não envolve transferência, criação ou compra de universidades. E na verdade, do ponto de vista financeiro, são operações em que instituições brasileiras compram serviços das americanas. 
Há vários casos de escolas de negócios licenciando a griffe de escolas americanas. Por exemplo, a Fundação Getúlio Vargas exibe no seu marketing o brasão de armas da Ohio University. Por muito tempo, teve um convênio com a University of Michigan. 
O IBMEC tem um acordo bastante interessante com a Harvard Business School. Nele, professores de lá ajudam a melhorar as práticas de sala de aula. 
Seria leviano oferecer uma apreciação equilibrada e definitiva do que trazem tais convênios. Mas, vendo de fora, parece que envolvem o prestígio do nome de uma universidade séria de Primeiro Mundo. Envolvem também a vinda de seus professores, para cursos de diferentes durações, bem como para conferências magnas. Imagina-se que a estrutura dos cursos e as ementas das disciplinas possam também ser parcialmente adotadas. Há também algum tipo de assistência técnica e oportunidade de estágios e intercâmbios para os professores brasileiros. 
Esse é um caso clássico de importação de padrões culturais americanos. Mas se queremos desenvolver um estilo local de gestão de empresas, isso só pode ser feito com um sólido conhecimento e familiaridade com as práticas mais consagradas e respeitadas no mundo – e que estão nos Estados Unidos (e em instituições com forte orientação americana, como o INSEAD, em Fontainebleau). Ademais, se tais estilos não vierem pela via das instituições de pós-graduação, virão com muito menos crítica e criatividade através das empresas. Há longas e justificadas discussões sobre as diferentes culturas organizacionais e a adequação de estilos de gestão a elas. Mas não é limitando o intercâmbio intelectual que avançaremos na nossa busca de modelos mais ajustados à nossa realidade. 
O ensino à distância
A partir da criação da Open University britânica, passa a ser possível para qualquer pessoa em qualquer nação freqüentar cursos oferecidos em países estrangeiros. A disseminação de cursos no formato de E-Learning facilita em muito o acesso e a freqüência a tais cursos.
Na prática, a freqüência de alunos brasileiros a cursos desse tipo tem-se mantido em níveis muito modestos, poderíamos mesmo dizer mínimos, diante do potencial oferecido. Uma das causas mais óbvias é o limitado domínio do inglês por parte de potenciais alunos brasileiros. E também o pesadelo do reconhecimento dos diplomas obtidos. Mesmo a iniciativa mais recente do IBMEC – um acordo com a Cardian University – não obteve a receptividade esperada. E isso apesar de muitos professores famosos, inclusive prêmios Nobel, prepararem os cursos. 
O MIT transformou em domínio público mais de duas mil disciplinas que oferecia a distância apenas a seus próprios alunos. Por tudo que se sabe, o máximo que acontece são alguns poucos professores que vão consultar os materiais em busca de idéias para suas aulas. Na verdade, materiais de ensino à distância estão muito mais próximos do que oferece uma biblioteca do que do estilo de uma escola. Educação apenas pela compra de livros e vídeos só funciona para pessoas muito diferentes da média. 
Por outro lado, a enorme pressão do MEC para que os docentes universitários tenham mestrados e doutorados levou à criação de uma onda de acordos para cursos de pós-graduação em convênios com universidades estrangeiras. Na maioria dos casos, são programas que mesclam ensino à distância com presencial. Alguns traziam um ou outro professor. Em alguns casos, os alunos passavam curtos períodos de tempo no exterior. Mas a trajetória de tais programas foi marcada por tropeços e colisões com o marco legal do ensino brasileiro. Por facilidades lingüísticas, a maioria dos acordos tem sido com universidades de língua espanhola ou portuguesa. Visando o encurtamento dos programas, a maioria dos cursos tem sido com instituições de segunda linha nos países de origem ou com instituições de países cujos cursos de doutoramento são muito menos exigentes do que no próprio Brasil. Previsivelmente, os graduados tiveram e têm imensos problemas para revalidar seus diplomas. Alguns desses programas são inferiores em qualidade e muito mais curtos do que os oferecidos no Brasil. A situação tornou-se tão constrangedora que o governo da Espanha obrigou as suas universidades a cancelar tais convênios. 
Nos anos recentes, o explosivo crescimento do ensino à distância no Brasil está em mãos de instituições brasileiras e é manejado por equipes que poucos contatos têm com universidades fora do país. Em suma, o ensino à distância não se revelou uma forma eficaz de internacionalização do ensino. 

O momento presente e cenários futuros

O que foi dito anteriormente já dá uma boa idéia da grande distância que existe entre instituições estrangeiras e o ensino superior brasileiro. Não parece que estamos andando na direção de reproduzir o ocorrido na indústria farmacêutica. 
Em primeiro lugar, vale perguntar por que a imprensa e alguns segmentos do nosso ensino superior se alarmaram tanto com a iminência de uma invasão do “capitalismo universitário” internacional? Mao Tsé Tung, faz cinqüenta anos, já desdenhava o poder do imperialismo americano. Para ele, era um “tigre de papel”, incapaz de materializar as suas ameaças. Será que o capitalismo universitário americano não será também outro tigre de papel?
Obviamente, não se trata de afirmar que todos os imperialismos americanos são tigres de papel, ameaçadores, mas inofensivos. Na área econômica, além da farmacêutica, aqui usada como exemplo, a indústria automobilística e muitas outras mostraram o poder do tigre. Nas áreas da imprensa, da comunicação, do lazer, das modas e dos padrões culturais, certamente, as garras do tigre são de verdade e têm sido usadas com competência e sucesso. 
Mas por tudo que se pode ver e medir, no ensino superior, os dentes do tigre ainda são “de leite”. Em outras palavras, não há no exterior uma massa crítica de empresas ou universidades capazes de ocupar um espaço grande no cenário da nossa educação superior – como ocorreu com as gigantescas e poderosas farmacêuticas. Nem na pátria do capitalismo o ensino superior empresarial consegue ter um peso substancial. Nem 10% das matrículas estão em mãos de instituições com ânimo de lucro. Ainda menor é o peso das empresas com alguma vocação para operar fora das fronteiras do país. A maioria depende de subsídios do governo federal que financia alunos pobres para fazer cursos técnicos. As duas maiores universidades (Apollo e Laureate) já estiveram ou estão no país. Das grandes, sobra a Devry, que poderia ou não aportar por aqui. Ou seja, não há massa crítica no país de origem para empreender a invasão às terras tupiniquins, tão temida por alguns.
Imaginemos um cenário extremo, em que cinco universidades americanas viessem a matricular, cada uma, cem mil alunos. Teríamos então, meio milhão de alunos estudando em instituições que poderiam desfraldar a bandeira americana. Ora, tal matrícula representará da ordem de 10% da matrícula total. Não parece uma grande ameaça.
Mesmo considerando que ainda pode haver um significativo potencial de investimento por parte de outras universidades americanas menores, cabe perguntar se o Brasil ainda é considerado um mercado tão cobiçado para investimento em ensino superior. Afinal, as taxas de crescimento sofreram uma queda considerável nos últimos dois ou três anos. Algumas análises mostram que o crescimento atual deve-se a programas públicos como o Prouni.
Ademais, não há no cenário brasileiro prêmios de cinqüenta milhões de dólares para universidades americanas que queiram considerar sua vinda para o Brasil – como acontece com os países do Golfo Pérsico.
Obviamente, a situação não é estável. Nos Estados Unidos, o avanço de empresas educativas com fins de lucro tem sido impressionante. Ainda assim, está longe o dia em que tenham peso suficiente para sair do país e ter um portfólio de investimentos substancial no ensino superior brasileiro. Até chegarem lá, se é que vão chegar, temos muito tempo para refletir e decidir o que é melhor para nós. 
A esse respeito, vale relembrar que – comparado com os Estados Unidos – o Brasil tem uma presença muito mais substancial de instituições de ensino superior com fins de lucro (mais as outras que também têm, mas não o declaram). Trata-se de uma questão palpitante de política pública, pois não há precedente nem aqui e nem fora. 
Ainda estamos longe de chegar a um acordo acerca do bem ou do mal que possa trazer um objetivo de lucro explícito. Mas apenas de forma oblíqua essa é a agenda do presente ensaio. Vale apenas mencionar que dentre as nossas instituições com fim de lucro incluem-se algumas exemplares pela qualidade do ensino e outras lamentáveis. 
Finalmente, para aqueles que acreditam que o capitalismo só traz benefícios quando há concorrência, a vinda de algumas universidades de fora traz a adrenalina resultante da entrada de competidores fortes. Nesse sentido, é um elemento positivo.

Quem sabe, há internacionalização de menos? 

Os parágrafos anteriores atenuam os temores de uma invasão capitalista. Contudo, talvez o maior risco esteja no outro extremo do espectro: nosso isolacionismo. Na sua desastrada tentativa de reformar o ensino superior, o MEC propôs um projeto que tinha duas características que interessam à presente discussão. A primeira era um artigo que limitava a participação de universidades estrangeiras a menos de um terço do capital. Importa menos a pouca probabilidade de aprovação de tal lei do que o mero fato de ser proposta pelo Executivo. A segunda é a total ausência de políticas que pudessem dar às nossas universidades um padrão internacional. Todos os países emergentes (Coréia, Chile, Cingapura, Malásia etc.) explicitam as suas decisões de internacionalizar suas grandes universidades. A China anuncia o seu interesse em ver universidades estrangeiras instalando-se no país. Quanto mais, melhor. Enquanto isso, o Brasil se encolhe e teme as influências alienígenas no seu ensino. 
Nas conhecidas listas das melhores 200 ou 400 universidades do mundo, preparadas por uma universidade chinesa e pelo Times - Higher Education Supplement, o Brasil prima pela ausência (quase completa). Contrasta com Cingapura que – com quatro milhões de habitantes e menos de cinqüenta anos de existência como país – tem uma universidade muito bem situada. 
Weber University, Apollo e outras abriram campi na Europa, ensinando em língua inglesa e trazendo seus sistemas de ensino. Muitas universidades européias já oferecem mestrados em inglês e as teses redigidas nessa língua tornaram-se quase a regra nos países escandinavos. Japão, Egito e Líbano têm universidades americanas, faz muito tempo.
No Brasil, causavam iras incontidas as reuniões do conselho universitário do ITA conduzidas em inglês, pois os professores eram quase todos americanos. De fato, não oferecemos cursos em outras línguas. A legislação brasileira é muito fechada. Os processos junto ao MEC trituram as inovações. Não seriam jamais permitidas as universidades estrangeiras, como as que se instalaram no Japão, Egito, Líbano, Suíça, Inglaterra e Holanda. 
Como já sugerido, o que de melhor aconteceu com nosso ensino superior foi a horda de mestres e doutores que retornaram das melhores universidades dos Estados Unidos e da Europa. Trouxeram uma ciência mais empírica e experimental. Trouxeram novos ares e novas modas nas artes. Sobretudo, os bolsistas que foram para os Estados Unidos trouxeram idéias de uma pós-graduação moderna, bem estruturada e produtiva. O resultado foi um colossal progresso da nossa pesquisa. Passamos de uma produção internacional nula nos anos 1950 para sermos o 15º país que mais produz pesquisa. 
Contudo, essa revolução não alcançou a graduação. Esta se viu privada de aggiornamento que pudesse trazer benefícios equivalentes. Os jovens mestres e doutores encontraram um terreno virgem na pós-graduação. Puderam criar cursos sem os vícios de origem que maltratam nossa graduação. Em contraste, encontraram na graduação a barreira cerrada das velhas igrejinhas acadêmicas e das ferozes elites de poder universitário. Diante de tais barreiras, não ocorreu a revolução necessária. Continuamos com aulas mortas, passivas, pouco estimulantes. A estrutura de governabilidade das universidades públicas é disfuncional. Persistimos por tempo demais nos currículos datados de meio século, importados de uma universidade francesa que já não mais os utiliza, faz tempo. São currículos requentados, distantes do mundo do trabalho. Além disso, excluem a formação clássica e humanista – hoje presente na Europa e nos Estados Unidos.
Aliás, os temas mais sensíveis do ensino superior estão na filosofia curricular. Quanto de profissionalização, quanto de humanidades? O que os alunos devem ler para desenvolver sua identidade cultural? São os temas “perigosos”. Mas são também os temas em que a experiência internacional se constitui no melhor antídoto para o nosso paroquialismo atávico. Voltando por um momento ao tema central do presente ensaio, são temas em que as universidades privadas que vieram ou poderiam vir para o Brasil não têm nem interesse e nem nada para oferecer – de bom ou de ruim. Para o bem ou para o mal, suas preocupações passam longe de tais temas. Simplesmente repetem o que fazem todos. 
Precisamos ventilar as idéias mofadas que esmagam nossos cursos de graduação. Nesse sentido, a internacionalização é mais do que bem-vinda. O influxo de experimentos e idéias de outros países poderia ter um papel relevante de arejar nosso ensino. 
Não obstante, o quadro presente não parece apontar em tais direções. A internacionalização “privatista”, denunciada pelos mais temerosos, provavelmente não vai acontecer com uma profundidade que traga maiores cuidados. Mas, se acontecesse, tudo indica que não traria os benefícios discutidos acima. Não duvidamos que os recursos trazidos possam contribuir para o crescimento da oferta de vagas e de boas práticas gerenciais. É preciso não esquecer que o país sofre de uma taxa de poupança anêmica e precisa complementá-las com recursos externos. Porém, a julgar pelo que já aconteceu com as instituições que vieram ou poderiam vir para o Brasil, é improvável que tragam as inovações e mudanças de que necessitamos.

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