quinta-feira, 14 de abril de 2011

Os dois canhonaços


JANIO DE FREITAS
FOLHA DE SÃO PAULO

Hipocrisia rima fácil para diplomacia, na prática verbal entre as nações, mas em dois casos semelhantes o Brasil ameaça levar a combinação a extremo que vai do irracional ao ridículo vergonhoso.

Por certo, receber dois canhonaços internacionais em uma semana é embaraçoso. Foi o caso do pedido, feito pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), de suspensão do licenciamento ambiental e das primeiras ações locais para construção, no Pará, da usina de Belo Monte. O fundamento principal do pedido é a defesa dos direitos humanos dos índios da região e das comunidades mistas, a serem desalojadas de seu habitat natural.

Foi ainda o caso, logo depois, do relatório anual do governo dos Estado Unidos sobre direitos humanos no mundo. O Brasil é criticado pelo que o relatório considera pequeno avanço no combate a variadas formas de violência, desde as execuções feitas por policiais até a censura de imprensa determinada por alguns juízes.
É óbvio que o governo dos Estados Unidos não está isento de transgressões aos direitos humanos, nem sequer minimamente. Seja em sua presença pelo mundo afora, seja na realidade interna, com a ferocidade policial voltada contra negros e "hispânicos", o tratamento às vítimas de suspeição gratuita de terrorismo e a escassa assistência à pobreza, por exemplo. Não por outros motivos o relatório e os comentários de Hillary Clinton tiveram a prudência de falar dos outros, nada sobre os Estados Unidos.

Mas o argumento da falta de autoridade factual e moral dos americanos, usado na primeira reação do governo brasileiro, é um escapismo comprometedor. Primeiro, porque há muitas verdades contidas nas referências negativas ao Brasil de 2010. Adotar qualquer reação que implique não as admitir é hipocrisia, se aqui dentro todos dizemos, todos os dias, a mesma coisa a respeito de nossas adversidades sociais, das polícias, da violência contra a mulher e a infância, da insegurança urbana.

Além disso, se não há como esconder ou negar o verdadeiro, há o que mostrar. O avanço em várias daquelas frentes não tem sido pequeno, e não é de hoje. Há o suficiente para dizer e calar o que seja desproporcional na acusação.

O licenciamento de Belo Monte foi motivo de longo enfrentamento dentro do governo Lula. As medidas que o governo adotou em atenção às reclamações sofreram, todas, de uma insuficiente definitiva: já nasciam enfraquecidas pela determinada vontade do governo de fazer a usina. Belo Monte, Jirau, Santo Antônio igualam-se nas mesmas polêmicas irresolvidas.

O Brasil tem experiência nesse sentido, com suas usinas. Tucuruí, para citar um caso, deve passar à história como desastre combinado de engenharia, de destruição da natureza animal e vegetal, e da prepotência. A área inundada se mostrou muito maior do que a prevista; a quantidade de animais mortos é inimaginável; a inundação da floresta, com perda de uma riqueza imensa em madeira nobre e em promessas bioquímicas, chegou a obstruir as turbinas com restos e com a quantidade imprevista de resina.

Nelson Jobim, da Defesa, acha que o documento da OEA deve ser devolvido, simplesmente. O Itamaraty manifestou preferência por uma resposta dura, nesta semana. Mas a OEA, que não tem na história lugar admirável, ao menos por sua Comissão de Direitos Humanos está mais correta do que o seu filiado Brasil, a respeito de Belo Monte. E da hipocrisia como rima de diplomacia.
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