Rosiska Darcy de Oliveira
O Globo
A perda da memória é um dos rostos da morte. Quem habita um eterno presente, sem história e sem futuro, não percebe que seu tempo se esgotou. Como nos destinos individuais, a perda da memória coletiva pode ser o fim de uma civilização.
Por quanto tempo as imagens de pesadelo que vêm do Japão ainda sobreviverão em nós? Vinte anos atrás, Francis Fukuyama anunciou o fim da história, um capitalismo beatífico e o progresso constante. O capitalismo quase derreteu na crise financeira, o progresso incessante foi arrastado na tsunami japonesa.
Fukushima pode ser o verdadeiro fim da história se o apocalipse que lá se ensaia cair no esquecimento. A velocidade e a multiplicação geométrica da informação têm o efeito perverso de reduzi-la a dejeto que mal se acomoda na memória superlotada, solicitada por um cardápio de tragédias ou pela banalidade dos gestos cotidianos que, nas redes sociais, ganham foro de notícia. Esse mundo instantâneo tritura o acontecimento. Difícil pinçar, como fez Von Neumann, onde a história começou a tropeçar.
Em junho de 1955, o pai dos computadores publicou na revista "Fortune" um artigo premonitório: "Sobreviveremos à tecnologia?" Intuía um problema sem precedentes: o imbróglio entre as potencialidades do engenho humano, a soberba indiferença da natureza e as fragilidades dos comportamentos coletivos. A sociedade tecnológica, advertia, é altamente vulnerável a si mesma. Tinha razão. Habilidosa em nos convencer que todo risco é controlável, tem pendor suicida. Arrogante, quando fracassa acusa a natureza.
Catástrofe natural é uma expressão sem sentido. A natureza simplesmente se move, satisfaz seus desígnios imprevisíveis, vive seus mistérios. Não argumenta, não negocia. A catástrofe é nossa, humana, resultado de decisões que tomamos como construir centrais nucleares em locais sujeitos a tsunamis, ou, como em Angra dos Reis, próximas a encostas que vêm abaixo ao peso das tempestades de verão.
Catástrofes não são imputáveis à natureza, mas a quem, de olho nos lucros, assume o risco de ignorá-la, vende uma falsa ideia de segurança e omite a já comprovada possibilidade de acidente.
Comportamentos humanos, de maneira recorrente, vêm se mostrando tóxicos, radioativos mesmo. O perigoso combustível que os alimenta é a mistura da ganância com a mentira.
Foi a crise financeira quem primeiro pôs a nu essa mistura explosiva. A horda de desempregados e sem-teto que a fraude planetária deixou pelas ruas ou em abrigos de indigentes atesta a toxicidade dessa nuvem de miséria que os acompanha até hoje e lhes envenena a vida.
Na tragédia japonesa, a empresa Tepco, operadora das centrais atingidas, que já fabricara falsos relatórios sobre segurança, sonegou informações e minimizou consequências. Tudo para não correr o risco de perder um rico negócio. Os outros riscos, letais, foram distribuídos pelo resto da população.
Falou mais alto a ganância pela voz da mentira. Bancos que ruíram como castelo de cartas também entoavam o refrão de confiabilidade e solidez. Deu no que deu.
Metáfora macabra dos riscos que corremos, a patética imagem de um helicóptero, mosquito impertinente, derramando baldes de água - e errando a mira - sobre um reator nuclear em risco de derretimento dá calafrios.
Pensar que duas centrais nucleares e uma terceira em construção são vizinhas do Rio Janeiro assusta. Só a vocação do avestruz explica a convivência com esse monstro encalhado à beira-mar sem que as populações das cercanias da usina, como nós, cariocas, cobrem informações e voz nas decisões. Sem que cientistas, políticos e a empresa responsável sejam convocados ao debate público. O que está em questão é a opção pelo nuclear, não as rotas de fuga.
Quem ousaria, depois de Fukushima, garantir que as centrais de Angra são seguras? Mais seguras que as centrais suíças e alemãs que estão sendo desativadas? Que faríamos em caso de acidente nuclear que, imprevisível, é possível? Começaríamos por tocar uma sirene que já foi roubada e ninguém notou? Angra 2 funciona há dez anos sem licença ambiental. As autoridades não sabiam? O que mais não sabem? O que mais não sabemos?
Transparência e precaução são grandes ausentes na cultura brasileira. O drama dos bombeiros, tentando apagar o incêndio em um prédio histórico no coração do Rio até com água de piscina, não augura nada de bom em caso de desastre maior.
Angra, em caso de acidente, viraria um pandemônio. Só então, na areia, um avestruz assustado desenterraria a cabeça. Tarde demais.
ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA é escritora
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