quarta-feira, 27 de abril de 2011

Dez Anos de Reforma da Indústria de Petróleo: Lições e Novos Desafios


Desde os meados dos anos 1980, mais de uma centena de países promoveram mudanças estruturais e institucionais no modo de organização de suas indústrias energéticas. Um traço marcante desse movimento foi a criação de agências reguladoras, às quais foi atribuída, além das funções tradicionais de regulação (a gestão de tarifas e preços, a manutenção da confiabilidade das redes e da qualidade dos serviços etc.), a missão de organizar o processo de entrada de novos agentes nessas indústrias. Após a efervescência da fase de desregulamentação e fragmentação de monopólios, a regulação econômica ingressa hoje, em todos os países do mundo, numa nova fase marcada pela franca revisão de suas missões, objetivos e instrumentos.

Algumas experiências mal-sucedidas de reforma (em particular, o caso da indústria elé-trica na Califórnia) revelaram as falhas de re¬gulação de mercados oligopolistas e de desenho institucional. 

O aumento da complexidade das estruturas industriais e institucionais, a partir da entrada de novos players, requereu o desenho de uma nova rede de relações contratuais entre os diferentes agentes econômicos. Tornou-se assim indispensável o desenvolvimento de novos instrumentos que combinam os mecanismos de regulação setorial com os de defesa da concorrência, baseados na legislação antitruste e de arbitragem de conflitos contratuais. As novas formas de regulação que surgiram para atender à necessidade de criar um ambiente competitivo, em muitos casos sob a atuação conjunta dos órgãos setoriais e da concorrência, ainda representam um desafio aos órgãos reguladores na maior parte dos países que optaram por reestruturar suas indústrias energéticas. 

As novas estruturas institucionais e o arcabouço jurídico variam de um país para outro, englobando um amplo espectro de atribuições e instrumentos de ação. Os resultados observados após as reformas setoriais oferecem lições interessantes.

Primeiro, os problemas atuais de regulação demandam a necessidade de avaliação e aperfeiçoamento permanentes dos instrumentos e das práticas tradicionais de regulação. Essa revisão é resultado da conjugação dos seguintes fatores:

    1.    ativismo legislativo, com a criação de novas regulamentações/leis num ambiente de queda das barreiras institucionais à entrada de novos operadores;
    2.    novo paradigma da concorrência, com modificação das estruturas de mercado dos diferentes segmentos das cadeias energéticas; e
    3.    mudanças tecnológicas e novos comportamentos estratégicos que possibilitam a diversificação das atividades das empresas.

Além de mais complexa, a atividade de regulação das indústrias de energia tornou-se fortemente dependente da evolução das configurações patrimoniais e das estruturas de mercado. Esse é um dado novo para as agências reguladoras, pois, no passado, o modelo tradicional – integrado verticalmente e monopolista – já definia de antemão os contornos do mercado e dos direitos de propriedade da empresa operadora.

Segundo, é crescente a ocorrência de um desenho institucional comportando um duplo processo regulatório nas indústrias de energia: um órgão setorial e um órgão de defesa da concorrência. A efetividade desse arranjo institucional ainda não foi convincentemente comprovada. Nos países desenvolvidos, a tendência tem sido a intervenção a priori dos órgãos reguladores setoriais e a posteriori dos órgãos de defesa da concorrência, muitas vezes convocados pelo governo e/ou pelo regulador setorial para investigar casos de abuso da posição dominante. O sucesso desse tipo de arranjo institucional ou estrutura de governança depende, na verdade, das relações hierárquicas que podem ser estabelecidas. E estas, por sua vez, dependem do desenho institucional, do apoio político, da estrutura organizacional e do tempo de vida de cada um dos órgãos. 

Vale lembrar que, nos países europeus, a criação dos órgãos de defesa da concorrência antecede o surgimento das agências reguladoras setoriais. No caso dos países em desenvolvimento, esse processo de criação de novas instituições é praticamente concomitante. Mas os órgãos de regulação setorial receberam apoio político e recursos financeiros mais significativos para a sua estruturação. Tanto apoio interno como também externo, neste caso, por exemplo, por meio do Banco Mundial, que deu prioridade às reformas dos setores de infra-estrutura em sua política de empréstimos ao longo dos anos 1990.

Terceiro, a questão da autonomia e do poder discricionário nos diferentes desenhos institucionais está vinculada diretamente ao problema da relação dos órgãos reguladores com as demais estruturas de poder. Num extremo, está o caso norte-americano, em que se delega um vasto poder discricionário aos órgãos reguladores, em função da natureza quase-judicial da atividade regulatória. Dificilmente esse exemplo poderá ser replicado em outros países. A tendência em países onde os órgãos reguladores foram recentemente criados é limitar o seu poder discricionário, como ocorre no Brasil. Essa limitação, por sua vez, reflete-se no incremento do risco regulatório, dada a necessidade de criar um ambiente estável para atrair investimentos. 

A construção do marco legal da indústria do petróleo e gás no Brasil

A reestruturação do setor público no Brasil, nos anos 1990, seguiu o movimento de reformas ocorridas no nível mundial e adotou como principais medidas o programa de privatização, a abertura econômica, a liberalização do mercado e as chamadas políticas de competição, com ampla alteração da legislação, inclusive da Constituição de 1988.

Nesse contexto, a incorporação de capitais privados em setores até então monopolísticos e exclusivos do Estado engendrou a necessidade da construção do anteparo regulatório que poderia proporcionar a ruptura para um novo modelo de desenvolvimento da infra-estrutura nacional. O até então Estado planejador, indutor e executor deveria dar lugar a um ambiente concorrencial, sob regras e fiscalização de agentes públicos, denominados “reguladores”. A regulação no Brasil passou a ser o fator de equilíbrio entre os interesses dos agentes produtivos e dos agentes produtores. Assim ocorreu na telefonia, no setor de energia elétrica, no petróleo e gás, no uso das águas e outros setores, mesmo onde o conceito de regulação não caberia.

No setor de petróleo e gás natural, em particular, essas mudanças institucionais buscaram introduzir pressões competitivas naqueles segmentos em que a concorrência fosse possível. A escolha do modelo de abertura no setor de petróleo e gás natural foi marcada pelo gradualismo das mudanças estruturais e institucionais e pela deliberada escolha política de preservar o papel da estatal Petrobrás como a empresa líder e dominante no setor. 

Em termos setoriais, o objetivo governamental da reforma da indústria brasileira de hidrocarbonetos foi a introdução de pressões competitivas, através do estímulo ao ingresso de agentes privados e à formação de associações (parcerias) entre a estatal Petrobrás e agentes locais e/ou estrangeiros, presentes e/ou potenciais entrantes na estrutura do mercado doméstico. 

Do ponto de vista formal, a reforma da indústria de hidrocarbonetos teve início em 1995 e esteve vinculada ao programa de Reforma do Estado Brasileiro, implementado no governo Fernando Henrique Cardoso. Seguindo essa orientação, a Emenda Constitucional n. 9/1995 determinou a quebra legal do monopólio da Petrobrás, exercido desde 1953, sobre as atividades de pesquisa e lavra de jazidas de petróleo e gás natural, refinação de petróleo, comércio internacional de derivados, bem como transporte de petróleo, seus derivados e gás natural. 

Com a promulgação da Lei n. 9 478, em 1997, foi criada a anp (Agência Nacional do Petróleo, hoje rebatizada como Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), cuja finalidade é “promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo” (art. 8°). 
A anp, agência reguladora governamental, tem a incumbência de realizar as licitações para a concessão de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e gás natural, celebrar os contratos delas decorrentes e fiscalizar a sua execução.

Criada como autarquia especial e vinculada ao Ministério de Minas e Energia (mme), essa Agência possui a responsabilidade de regulamentar e regular a atuação de todos os agentes operadores, inclusive a Petrobrás, no mercado brasileiro de petróleo e de gás natural, atendendo ao dispositivo da reforma constitucional de 1995, que retirou da estatal a competência de executora exclusiva do monopólio.

Formalmente, a anp também possui autonomia financeira e decisória, sendo dirigida por um diretor-geral e mais quatro diretores, com mandatos de quatro anos, sendo autorizada uma recondução ao mandato. 

Cabe destacar ainda que, assim como as demais agências reguladoras, a anp acumula as responsabilidades de poder concedente e de regulação. No âmbito da mesma lei, foi instituído o Conselho Nacional de Política Energética (cnpe), ao qual foram atribuídas as funções de promover o aproveitamento racional dos recursos energéticos; assegurar seu fornecimento a todo o território nacional; rever as matrizes energéticas das regiões; bem como estabelecer diretrizes para programas específicos e para importação e exportação de petróleo e gás.

Tanto o cnpe quanto a anp integram uma organização político-institucional e regulatória da indústria brasileira de hidrocarbonetos de energia que envolve o governo federal e os estados da federação. Ao Ministério de Minas e Energia (mme) cabe a elaboração das diretrizes de política energética, as quais são validadas ou contestadas no cnpe. As agências reguladoras estaduais, embora tenham um escopo multissetorial, regulando outros setores de infra-estrutura, tratam, lastreadas na Constituição Federal, especificamente da regulação das atividades de distribuição de gás canalizado. 

Também no bojo da Lei n. 9 478, foram alteradas as condições da cobrança das chamadas Participações Governamentais (government take, no jargão do setor). Até a promulgação da lei, a cobrança resumia-se aos royalties, equivalentes a 5% do valor bruto da produção. Com a nova legislação, esse valor passou a 10% da receita bruta (podendo ser menor, nos casos de campos de baixa produção). Além disso, foi introduzida a Participação Especial (PE), compensação financeira extraordinária devida pelos concessionários de exploração e produção de petróleo ou gás natural, nos casos de grande volume de produção ou de grande rentabilidade. A participação especial é regulada pelo Decreto n. 2 705/1998 (informação relevante quando se pensar nas compensações fiscais decorrentes da exploração das recentes descobertas no pré-sal, como se verá mais adiante). Em termos de arrecadação, a PE representa, nos dias atuais, valores significativamente mais expressivos do que os royalties.

Resultados da abertura da indústria brasileira de petróleo e gás

Não obstante a vasta gama de missões, é inegável que uma das principais atuações da anp tem sido a organização do processo de entrada de novas empresas no segmento upstream (que lida, essencialmente, com as atividades de exploração e produção de petróleo). Através do mecanismo de leilão de blocos exploratórios, o processo de abertura foi muito bem-sucedido no período 1999–2007 . Nas rodadas realizadas pela anp nesse período foram concedidos mais de quinhentos blocos de exploração, com montantes arrecadados de bônus de assinatura – pagamento pela concessão para explorar as áreas – superiores a quatro bilhões de reais.

Os resultados desses leilões confirmaram a liderança da Petrobrás, que arrematou a maior parte da oferta de blocos, ancorada na experiência geológica das bacias sedimentares brasileiras. Os leilões foram considerados bem-sucedidos em razão do número de participantes interessados e da arrecadação de bônus de assinatura. Até o momento, quase setenta empresas nacionais e estrangeiras estão qualificadas para participar dos processos licitatórios da anp, algo impensável há poucos anos atrás.
Não obstante a ampliação do número de empresas operadoras, a Petrobrás prosseguiu sendo a principal empresa do setor e a principal vencedora de todas as rodadas de licitação. A necessidade de compartilhar riscos, custos e, sobretudo, a competência tecnológica requerida pelo esforço exploratório em áreas offshore de fronteira são fatores que impulsionaram as estratégias de cooperação entre as companhias brasileiras e internacionais e a Petrobrás na reestruturação do upstream brasileiro. Essas estratégias marcaram o ingresso de grandes grupos petrolíferos globais e a internacionalização do segmento upstream no Brasil. 

Quanto ao segmento downstream, cabe notar que o parque de refino brasileiro é composto de 14 plantas, incluindo uma unidade de beneficiamento de xisto e uma fábrica de lubrificantes. A capacidade nominal é de cerca de dois milhões de barris/dia e a Petrobrás detém 98% desse total. Logo, o processo de abertura do setor não produziu nenhuma conseqüência na estrutura de mercado desse segmento de atividade.

No que concerne à distribuição de derivados, ao contrário de outros países que organizaram de forma verticalizada e monopolista a indústria de petróleo, esse segmento sempre comportou várias empresas privadas internacionais e nacionais, constituindo um oligopólio competitivo no qual se destacavam as empresas Shell, Esso, Texaco, Ipiranga, Atlantic, entre outras. É importante observar que a entrada da Petrobrás nesse segmento de atividade da cadeia petrolífera foi tardia, dado que a subsidiária br Distribuidora foi criada apenas em 1971, 17 anos após a criação da Petrobrás.

O novo modelo regulatório do downstream brasileiro, regulado pela anp, teve por objetivo aumentar as alternativas de oferta de derivados no mercado interno, viabilizando, assim, a concorrência entre os supridores. Tendo em vista esse objetivo, o novo modelo buscou ampliar a diversidade dos agentes econômicos que atuam no mercado e, hoje, além das grandes empresas internacionais, o segmento de distribuição de derivados comporta cerca de duzentas empresas de pequeno e médio porte.
Essas mudanças implicaram a necessidade de reforçar as competências da anp no que tange à fiscalização e à regulação do segmento e, em particular, da qualidade dos combustíveis comercializados.

Já na indústria de gás natural, os principais marcos regulatórios também são ancorados na Lei n. 9 478/1997 e na Constituição Federal. Contudo, esse marco legal revelou-se inadequado para tratar das principais questões regulatórias da indústria de gás, em especial a interface com o setor elétrico, decorrente do aumento da participação da geração térmica a gás. Ademais, ainda persistem muitas incertezas com relação à fronteira de competência regulatória federal (transporte) e estadual (distribuição). 

Até maio de 2008, o Congresso não havia aprovado o projeto de lei específico, atualmente em tramitação, para definir um novo marco legal e arcabouço regulatório para a indústria de gás.

Desse modo, vale notar que a Petrobrás cumpre o papel de national champion na economia brasileira. A companhia é especializada nos seguintes segmentos da indústria de petróleo, gás e energia: exploração e produção; refino; comercialização; transporte; petroquímica; e distribuição de derivados. 

Como mencionado anteriormente, a estatal é a “grande vencedora” das rodadas de licitações e é responsável por praticamente toda a produção de petróleo do país. Na distribuição, a subsidiária br Distribuidora é a líder no segmento, mas disputa fatias de mercado com outras distribuidoras.

No que se refere ao gás natural, a Petrobrás é, atualmente, responsável por cerca de 96% da produção doméstica e 90% da importação de gás. Além disso, é detentora de praticamente toda a infra-estrutura interna de transporte. Com relação à distribuição, a Petrobrás detém participação em vinte das 26 distribuidoras de gás canalizado estaduais. Pelo lado da demanda, participa em muitos projetos de construção de plantas termelétricas e em co-geração.

O processo de abertura foi importante para a consecução do objetivo de redução da dependência externa de petróleo. Esse objetivo constitui um elemento constante na política energética brasileira, desde o primeiro choque do petróleo, em 1973, e sempre representou uma prioridade dos diferentes governos que assumiram o poder no Brasil desde então. As importações apresentaram queda de 27% entre 1995 e 2006, passando de 182,5 para 131,9 milhões de barris. Ao mesmo tempo, verificou-se um significativo aumento das exportações nesse período, saltando de 1,84 milhões de barris, em 1995, para 134,34 milhões de barris, em 2006.

Apesar da (quase) conquista da auto-suficiência do petróleo, a dependência externa com relação ao gás natural segue crescendo. Os problemas relacionados com as importações reorientaram a estratégia de suprimento de gás natural da Petrobrás na direção de lançar um programa de investimentos para desenvolver a infra-estrutura necessária para a importação de gás natural liquefeito (gnl). 

Lições aprendidas até aqui

O processo de abertura da indústria de petróleo e gás pode ser sintetizado a partir da análise de cinco lições e traços marcantes. 
Primeiro, o mecanismo de leilões de blocos de petróleo consubstanciou o processo de abertura e permitiu, com grande transparência, a entrada de dezenas de operadores na exploração e produção de petróleo. 

Segundo, a Petrobrás permanece como a principal empresa operadora no país e vencedora da maior parte desses leilões atuando sozinha ou em parceira com outras empresas; mas é inegável que foi criado um novo ambiente de negócios que permite a atuação de novas companhias petrolíferas no segmento upstream, especialmente para compartilhar o conhecimento tecnológico acumulado pela Petrobrás na exploração offshore em águas profundas.

Terceiro, uma das principais questões remanescentes e que possivelmente trará problemas para as empresas privadas que vierem a descobrir petróleo diz respeito à política de preços e à posição dominante da Petrobrás no segmento de refino. Detentora de praticamente 100% das refinarias, a Petrobrás pode atuar como monopolista e monopsonista, dificultando a ação das empresas concorrentes. Desse modo, a abertura não gerou os mesmos efeitos, em matéria de redução de barreiras à entrada e de participação de novas empresas, ao longo de todas as atividades econômicas da cadeia petrolífera. 

O sistema de defesa da concorrência no Brasil tem-se mostrado incapaz de tratar desse problema. É inegável que o peso político da Petrobrás nas decisões governamentais é um fator explicativo da falta de decisões objetivas dos órgãos de defesa da concorrência para o setor. É, pois, recomendável o fortalecimento de ações e competências das autoridades de defesa da concorrência, a médio e longo prazo, visando possibilitar o incremento de pressões competitivas em outros segmentos da cadeia petrolífera. O único atenuante à posição dominante da Petrobrás no mercado interno é o fato de que os hidrocarbonetos produzidos no Brasil podem ser exportados, o que, obviamente, vale mais para os hidrocarbonetos líquidos do que para o gás natural, que é de mais difícil transporte.

Quarto, a política energética nacional, embora formalmente a cargo do Ministério de Minas e Energia e referendada no âmbito do Conselho Nacional de Política Energética, ainda não é clara com relação ao futuro das atividades de upstream. A questão central é sobre as decisões a serem tomadas com relação ao papel da Petrobrás no incremento da produção nacional. O Brasil se tornará um exportador de petróleo? Esse aspecto está diretamente associado aos critérios que presidirão a oferta de novos blocos de petróleo a serem licitados ao longo dos próximos anos. Vale notar que seria recomendável dar transparência a esses critérios, visando facilitar o processo de tomada de decisão de investimentos e demais empresas operadoras privadas.

Quinto, com a relação ao papel da anp, é forçoso observar que, nos primeiros anos de sua atuação, a agência teve que enfrentar diversos embates com a Petrobrás na busca de implementar os dispositivos da Lei n. 9 478/1997 e foi muito bem-sucedida na organização do processo de entrada de novos agentes no upstream. O modelo brasileiro de leilões de licitação de blocos de petróleo tornou-se uma referência para a indústria internacional do petróleo. Porém, com o passar do tempo, as ações proativas da anp foram minguando e o próprio processo de licitações recebeu um duro golpe com a suspensão da oitava rodada de licitações no ano passado. Tal evento afetou seriamente a credibilidade da agência e colocou um ponto de interrogação sobre o aperfeiçoamento do modelo de licitação de blocos e sobre as próximas rodadas.
Em suma, é possível afirmar que o processo de reforma setorial foi bem-sucedido no segmento upstream, com regras transparentes visando organizar o processo de entrada de novos operadores através da utilização do mecanismo concorrencial de leilões de blocos de exploração de petróleo. A nova estrutura de government take ampliou sobremaneira a arrecadação fiscal, proveniente da atividade petrolífera, dos governos federais, estaduais e municipais.

É difícil vislumbrar uma mudança desse cenário a médio prazo, dado que o governo brasileiro aposta no gradualismo do processo de abertura e no fortalecimento da Petrobrás tanto no mercado doméstico quanto também no plano internacional. A evolução de longo prazo dependerá dos movimentos estratégicos da Petrobrás e da determinação política do governo quanto à manutenção do processo de incorporação de novos agentes ao setor. Nesse sentido, a motivação inicial de atrair investimentos privados pode tornar-se, na prática, um objetivo secundário. Apesar da ampliação do espaço de atuação de novos operadores, o resultado mais nítido do processo de abertura diz respeito à transformação da gestão e à expansão nacional e internacional do portfolio de ativos da Petrobrás. Por ora, não há sinais de inflexão dessa condição privilegiada alcançada pela Petrobrás após a reforma da indústria brasileira de hidrocarbonetos.

As descobertas recentes e os desafios para o futuro

Como dissemos no início, as novas formas de regulação que surgem para atender à necessidade de criar um novo ambiente de negócios e estimular a entrada de novos atores ainda representam um desafio aos policy makers na maior parte dos países que optaram por reestruturar suas indústrias petrolíferas. As novas estruturas institucionais, regimes fiscais e o arcabouço jurídico variam de um país para outro, de forma que o próprio entendimento daquilo que se denomina sistema regulatório engloba um amplo espectro de atribuições e instrumentos de ação. Mesmo nos países desenvolvidos, observa-se que a implementação de reformas e a construção de um novo marco regulatório é, na verdade, um processo de aprendizagem institucional que se traduz, em última instância, num processo de tentativa e erro.

Mesmo países que têm uma alta credibilidade do desenho institucional que trata da forma de regulação da indústria de petróleo, como, por exemplo, a Noruega, recentemente buscaram criar novos mecanismos que dessem conta nas mudanças nas condições de contorno da indústria, originadas interna ou externamente a cada país.

O Reino Unido também revisou, desde o início dos anos 1990, o marco regulatório das indústrias de energia. Em 1997, por exemplo, com a alternância de poder no governo britânico, houve novas mudanças de orientação na política energética e regulatória. Entre as mais significativas, destaca-se a fusão dos órgãos de regulação dos setores de gás (Ofgas) e de eletricidade (Offer), dando lugar a uma nova agência responsável por regular os dois mercados (Ofgem).

Desse modo, é absolutamente natural que esteja em curso, também no Brasil, um processo de discussão com vista ao aperfeiçoamento das estruturas regulatórias da indústria nacional do petróleo. As recentes descobertas em águas ultraprofundas, na área geológica do pré-sal, constituem um fator de grande magnitude e relevância que justifica a discussão sobre a readequação do marco regulatório no Brasil. 

O caráter inovador da descoberta numa área que é considerada de fronteira petrolífera exigirá um imenso esforço de inovações tecnológicas e produtivas, visando maximizar o petróleo e o gás natural a serem produzidos. O desafio de superação tecnológica deverá ser acompanhado por igual desafio no plano institucional e regulatório, dadas as circunstâncias específicas que envolveram os campos recém-descobertos. Por isso, a questão que se coloca doravante é sobre a natureza das mudanças que seriam requeridas no sistema regulatório do país, passando o Brasil a operar como exportador líquido.

As recentes descobertas nos blocos batizados como Tupi, Júpiter e Carioca modificam estrutural e radicalmente a posição do Brasil no cenário petrolífero internacional. Mesmo sem os resultados que confirmariam os valores das reservas provadas, já é possível avaliar, a partir das estimativas mais conservadoras (de cinco a oito bilhões de barris para Tupi; mais de 30 bilhões para o campo de Carioca), que as novas descobertas permitirão alçar o país à condição de exportador líquido, incrementando substancialmente o volume de reservas atual (14 bilhões de barris de reservas). Portanto, mesmo olhando esses números de forma bastante conservadora e assumindo um fator de segurança de 50%, estamos diante de um aumento de 2,4 vezes nas atuais reservas nacionais. Para colocar esse crescimento em perspectiva, os conservadores 20 bilhões de barris equivalentes de petróleo (bep) de crescimento das reservas brasileiras equivalem a mais do que as atuais reservas do Canadá e colocariam o Brasil hoje como segundo país das Américas em termos de reservas, só perdendo para a Venezuela. 

Essas descobertas são uma ilustração exemplar do sucesso do processo de abertura, pois nesses campos a Petrobrás e suas parceiras (bg, Petrogal, Repsol) lograram repartir custos e riscos e, futuramente, os prêmios associados a essas mudanças. Esse é um aspecto central da reforma setorial e deve ser absolutamente preservado. A estatura e posição dominante e integrada da Petrobrás na cadeia produtiva petrolífera do país é fator indutor das estratégias cooperativas dos grandes players internacionais na evolução futura do mercado de upstream brasileiro. Os novos players têm um duplo interesse no processo de entrada: 1) no curto e médio prazos, a motivação é compartilhar os riscos, custos e benefícios com a Petrobrás na experiência acumulada na exploração e produção offshore; 2) no longo prazo, buscar a entrada no mercado doméstico, dados o tamanho e o ritmo de crescimento da demanda brasileira de derivados.

O incremento esperado das reservas e da produção podem requerer algumas alterações, na margem, no marco regulatório, mas não deveriam alterar os seus pilares principais, mantendo os incentivos à competição, via leilões, por novas áreas petrolíferas. Mesmo que o horizonte estimado de produção efetiva desses campos seja 2015, o país precisa preparar-se desde já para o conjunto de requisitos que a condição de exportador seguramente irá requerer. Nesse sentido, é importante considerar que: 

    1.    deve-se manter o dinamismo do ambiente de negócios e das empresas propiciado pelo marco legal vigente; 
    2.    o interesse mundial nas novas descobertas pode representar uma grande janela de oportunidades, para além da indústria do petróleo, pois implica a possibilidade de transferência de expertise em projetos em águas ultraprofundas para outros países e no desenvolvimento de uma indústria nacional parapetrolífera (fornecimento de bens e serviços);
    3.    é indispensável fortalecer a credibilidade institucional e regulatória.

Ademais, importa identificar as principais fontes de incerteza e restrições para a consecução dos planos de investimento em exploração e produção, entre elas:

    1.    as condições de exploração, desenvolvimento e produção são totalmente novas, implicando a existência de fontes de incerteza quanto às barreiras tecnológicas a serem superadas; 
    2.    o mercado de equipamentos e serviços parapetrolíferos encontra-se aquecido e operando sem folga de capacidade excedente de prestação de serviços e de disponibilidades de equipamentos. Esse aspecto amplia a incerteza quanto aos custos reais que serão incorridos e quanto aos tempos/prazos;
    3.    por ora, os preços internacionais do petróleo permanecem elevados, mas é fundamental avaliar a rentabilidade dos novos campos, em um contexto de preços significativamente inferiores;
    4.    qualificação profissional: nova escala de produção exigirá mais mão-de-obra qualificada e programas que permitam rapidamente a formação de cursos e de profissionais capazes de lidar com os desafios anunciados. Atualmente, o mercado de mão-de-obra, em todos os níveis da cadeia produtiva do petróleo, é crescentemente demandante, com as empresas encontrando sérias dificuldades para obter os profissionais requeridos;
    5.    qualificação gerencial: confirmadas as perspectivas de crescimento, a Petrobrás, como principal operadora, praticamente dobrará de tamanho num espaço de tempo muito curto. Isso requer uma redefinição clara de seu planejamento estratégico, gerencial e financeiro. Um dado importante é a perda progressiva dos quadros técnicos de alto nível da empresa, especialmente aqueles vinculados às áreas de exploração e produção. 

Aperfeiçoamento ou mudança do modelo regulatório?

Procuramos ressaltar, ao mesmo tempo, a robustez, a dinâmica e a eficiência da regulação do setor no Brasil. Tendo em vista o contexto atual do setor do petróleo no Brasil, com a auto-suficiência batendo às nossas portas, e, mais ainda, a perspectiva de que o país se torne exportador líquido de óleo e derivados, um certo “assanhamento” se verifica em relação a mudanças no marco regulatório que rege o setor. 

Decorridos dez anos da Lei do Petróleo, as recentes descobertas de grandes volumes de petróleo na bacia de Santos suscitaram um novo debate, que mobiliza parte da sociedade brasileira. Esse debate reflete a existência de interesses diversos: alguns vinculados ao desejo de aumento da participação do Estado brasileiro nas receitas oriundas da exploração de petróleo; outros que exigem a apropriação física das reservas, através de alterações legais que permitam o retorno do espírito monopolista de Estado, que prevaleceu até a alteração constitucional de 1995. 

No primeiro caso, a simples alteração do Decreto n. 2 705/1998, que regula as Participações Governamentais, poderia resolver o problema, com o aumento dos valores pagos nas participações especiais, que hoje representam a maior parte dos volumes arrecadados. Por outro lado, a corrente monopolista, que prega a volta de uma empresa única para a exploração das novas reservas, alega o baixo risco envolvido nessas concessões, o que não justificaria novas rodadas de licitações. Em outros termos, para que ceder áreas de exploração a terceiros privados, nacionais ou estrangeiros, se os riscos são praticamente inexistentes? 

Levando-se em conta que cabe ao governo definir os interesses estratégicos da sociedade, através do cnpe (Conselho Nacional de Política Energética) e tendo em mente a premissa maior de que o objetivo do Estado brasileiro é gerar riquezas para a nação e não maximizar o desempenho da Petrobrás, o foco da discussão, neste momento, não é quem deve ser o dono das reservas subterrâneas, no estilo adotado pelo presidente da Bolívia, mas, sim, como o Brasil pode beneficiar-se de forma plena dos frutos pecuniários dessa riqueza recém-descoberta. Vale a pena notar que a Petrobrás é uma empresa com mais de 70% do seu capital em mãos privadas; portanto, qualquer vantagem concedida à empresa vai, possivelmente, beneficiar mais diretamente o fundo de pensão de professores da Califórnia do que a comunidade carente no interior do Ceará. 

Ora, para maximizar a receita do governo brasileiro é necessário que o projeto se desenvolva em sua plenitude e de forma rápida. Considerando a inviabilidade legal e a insuficiência de recursos da Petrobrás para fazer isso isoladamente (a empresa teria que apresentar crescimento em reservas equivalente, percentualmente, ao verificado entre 1990 e 2006), não há melhor alternativa do que estruturar um regime fiscal que gere riqueza ao Brasil e de forma concomitante torne a participação de outras empresas atraente. 

Em resumo, o regime regulatório brasileiro é suficientemente capaz de atender às condições necessárias ao bom funcionamento da indústria brasileira de petróleo e gás. Por outro lado, propostas de alterações na lei poderão engendrar, por conta do atendimento de interesses particulares, a destruição de um sistema que torna o Brasil capaz de explorar de forma racional e inteligente suas riquezas petrolíferas. É inquestionável e amplamente aceita a tese de que deva ser aumentada a participação do Estado brasileiro nas receitas decorrentes da exploração nas reservas recém-descobertas. Para isso, apele-se à simplicidade com a reedição atualizada do Decreto n. 2 705/1998. 

David Zilberstejn é doutor em Economia da Energia pela Universidade de Grenoble, França. Foi Secretário de Energia do Estado de São Paulo (governo Covas) e primeiro Diretor-Geral da Agencia Nacional do Petróleo.

Helder Queiroz Pinto Jr. é doutor em Economia Aplicada pela Universidade de Grenoble e professor do Instituto de Economia da UFRJ.
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