quinta-feira, 14 de abril de 2011

A mesma alma


J.R. Guzzo
Veja


A Receita Federal do Brasil, que no mês de abril . vive seu grande momento do ano, tem duas caras, uma muito boa e outra muito ruim - o que já é um alívio, quando se leva em conta que o serviço público brasileiro, na maioria das vezes, oferece um lado só, o péssimo. A face brilhante da Receita Federal aparece justamente agora, quando se processa a entrega anual das declarações do imposto de renda. E um espetáculo de qualidade mundial: sem a necessidade de fazer um único metro de fila, ou de suportar qualquer dos maus-tratos que o poder público normalmente impõe aos cidadãos, cerca de 25 milhões de brasileiros entregam sua declaração por meios eletrônicos. dentro de um sistema que está muito próximo ao que se poderia chamar de ideal. A Receita, na verdade, tornou-se hoje em dia um dos serviços da administração pública a executar com maior competência e eficácia a função para a qual existe - arrecadar imposto. Se o Brasil funcionasse com metade de sua eficiência. já seria. há muito tempo um país de primeira classe. 

Deste momento anual de prodígio, porém, a Receita Federal passa diretamente para o século XVIll, quando El-Rei e a derrama do seu Fisco tratavam os brasileiros como servos - gente que só servia para pagar e que tinha de se sentir sempre a um passo da cadeia. Os computadores mudam de geração, mas a alma da Receita continua a mesma: insiste em ver os contribuintes como marginais em potencial, não respeita os "compromissos com eles e impõe a todos um clima de delegacia de polícia. Hostiliza quem paga mais. É feroz com o pequeno, ou com quem comete um equívoco de boa-fé. É servil diante de qualquer político poderoso do governo e da "base aliada". Não se incomoda em violar o sigilo fiscal dos cidadãos quando recebe "ordens superiores". Nunca se sente tão à vontade como nos momentos em que faz ameaças. 
Não há o menor sinal de que a nova gerência queira mudar isso. 
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O depurado federal Jair Bolsonaro é um homem que tem poucos amigos, ou, pelo menos. poucos  amigos dispostos a manifestar apreço por ele em público. Tem, no eleitorado do Rio de Janeiro, admiradores em número suficiente para se eleger, por seis vezes consecutivas, para a Câmara dos Deputados, onde está desde 1991. Mas, fora seus próprios eleitores, não há sinais de que muita gente goste dele, ou concorde com suas ideias, sua conduta e seu estilo. Em vinte anos de atuação na Câmara, Bolsonaro não conseguiu, tanto quanto se saiba, mudar a ordem geral das coisas no Brasil ou no mundo; na verdade, não chamaria maior atenção se a imprensa não fizesse tanta questão de publicar o que ele diz. De tempos em tempos, assim, o deputado se vê colocado no meio de algum bate-boca enfurecido, que faz muito barulho, escandaliza uma porcão de gente e acaba não dando em nada. É o que acontece mais uma vez, agora, depois de uma entrevista na qual fez declarações ofensivas aos negros, ou aos homossexuais, ou a ambos - e que teria se perdido na indiferença geral se a classe política não tivesse promovido o caso à condição de alto debate sobre os princípios da liberdade de expressão e da imunidade parlamentar. 

Foi um debate ruim. O lado contra Bolsonaro (não houve lado a favor) sustentou, basicamente, que o deputado não tinha direito a dizer o que disse; tendo dito, teria de ser punido; sendo deputado federal, não deveria se beneficiar da imunidade que a Constituição estabelece para parlamentares que façam declarações sujeitas a processo penal. Não há nada de certo nisso tudo. Como cidadão, Bolsonaro tem direito à livre expressão e, como deputado, tem direito à imunidade que protege todos os parlamentares,  inclusive ele, em relação a todas as opiniões que derem, até mesmo as que deu em sua entrevista. O que se poderia fazer de diferente, na prática? O deputado não está autorizado a praticar atos de racismo contra negros, ou agressões a homossexuais. Mas a lei não o obriga a gostar de uns ou de outros, nem a esconder o que pensa deles. É justamente para garantir que possa dizer tudo o que pensa, sobre este e quaisquer assuntos, que existe a imunidade parlamentar; na verdade, é unicamente para isso que ela serve. ou deveria servir. Se perder essa função, como foi proposto no caso do deputado Bolsonaro, ficará reduzida àquilo que tem de pior - um simples sistema de proteção à impunidade para os mais diversos crimes cometidos pelos políticos, da corrupção ao homicídio qualificado. Eis aí uma dessas ideias que só podem piorar o que já é um desastre.
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