sexta-feira, 29 de abril de 2011

Outros fantasmas rondam a Europa

Silvio Queiroz
Correio Braziliense 


Um século e meio atrás, era o espectro das revoluções sociais que assombrava o Velho Continente, na imagem construída por Karl Marx para a abertura de seu Manifesto do Partido Comunista (1848), obra capital para compreender o período histórico que se estende até a queda do Muro de Berlim, em 1989. Neste início de século, o fantasma do comunismo volta na forma do vigoroso capitalismo de Estado chinês, ávido por tomar a terra e o céu de assalto — para usar outra metáfora marxista. Mas as ameaças são múltiplas para uma Europa estagnada entre a crise conjuntural da bolha financeira e os impasses estruturais do welfare state. Um novo ciclo de imigração avança pelo Mediterrâneo como tsunami, sob impulso do terremoto político que varre o mundo árabe. E o terremoto geofísico que arrasou o Japão há pouco mais de um mês coloca novamente sob suspeita a energia atômica, vital para a estratégia econômica e ambiental do continente.

Esse entrechoque de desafios já produz desdobramentos políticos e eleitorais, com consequências potenciais para os demais polos de poder e influência na nova ordem mundial em formação. Observar o rumo dos acontecimentos em alguns pontos vitais da Europa será decisivo para que o Brasil contorne os riscos e aproveite as oportunidades que a crise oferece.


Alemanha verde
Na locomotiva econômica da União Europeia, a onda antinuclear detonada pelo acidente de Fukushima deu o empurrão que faltava para consumar uma mudança estrutural no sistema partidário do pós-guerra. A base eram duas forças principais — democracia cristã (CDU) e social-democracia (SPD) —, com os liberais (FDP) como fiel da balança. No início dos anos 1980, o movimento ecopacifista desembarcou no Parlamento para compor um quarteto e dar ao SPD uma nova opção de aliança. A reunificação alemã, em 1990, acrescentou à receita um novo ingrediente, os neocomunistas, influentes no leste do país. O efeito Fukushima começa a fazer dos Verdes o terceiro grande partido: nas últimas pesquisas de opinião, eles aparecem próximos ao patamar dos 30%, acima do SPD e nos calcanhares da CDU. Com o FDP abaixo da linha dos 5%, portanto ameaçado de exclusão do parlamento, desenha-se a possibilidade real de um ecologista tirar do cargo a chanceler Angela Merkel em 2014 — ou antes, se a coalizão de centro-direita não resistir às intempéries. Uma coalizão Verdes-SPD não apenas selaria o destino das usinas atômicas no país, mas poderia rever a exportação de tecnologia nuclear para outros países, como já ocorre com o Brasil. Sem falar na resistência ainda maior aos biocombustíveis, especialmente o etanol.

França no pêndulo
A outra viga-mestra da UE tem eleições presidenciais em 2012 e oscila no tradicional pêndulo esquerda-direita, mas uma terceira força se insinua entre o presidente Nicolas Sarkozy e a oposição socialista. A modorra econômica e o desemprego, em tempos de vacas magras, colocaram no jogo a extrema-direita anti-imigrantes. A direita clássica, reagrupada em torno do projeto pessoal de Sarkozy, sente o golpe e se debate entre a cruz e a espada: uma ala radicaliza o discurso contra o véu islâmico e acena com barreiras à entrada em massa de tunisianos e líbios, de olho nos votos perdidos para a Frente Nacional, de Marine Le Pen; outros, descontentes com essa guinada, desgarram rumo ao centro. Os verdes franceses progridem em ritmo mais lento que os alemães, mas devem apresentar candidato ao Eliseu, e a reação da esquerda clássica já se esboça: no país europeu mais nuclearizado, onde 80% da eletricidade vem das usinas atômicas, o Partido Socialista ensaia incorporar ao programa uma revisão (cautelosa) da matriz energética. Sarkozy e seu antecessor, Jacques Chirac, enxergaram no Brasil um sócio estratégico para se reposicionar na geopolítica global. É uma incógnita qual será a ênfase dada a essa parceria em um eventual governo do PS.

Espanha à direita
A crise econômica parece corroer as chances do premiê socialista José Luis Zapatero de conquistar o terceiro mandato, no ano que vem. Uma vitória do direitista Partido Popular sinaliza para uma política externa mais conservadora, com impactos na atenção privilegiada de Zapatero para com a América Latina em geral, e o Brasil em particular. Nos anos do compañero Lula, o presidente do governo — como preferem os espanhóis — abraçou iniciativas como o combate mundial à fome e à pobreza. Agora, a prioridade é fazer negócios fora para gerar empregos em casa. Era essa uma das prioridades da chanceler Trinidad Jiménez na visita que faria a Brasília no fim de março, cancelada por conta do envolvimento do país com a operação militar na Líbia. Empresas espanholas olham com apetite para as obras de infraestrutura programadas no país, começando pelo trem-bala, sem falar no mercado da telefonia. Por sinal, foi a gigante Telefónica quem patrocinou, nesta semana, uma palestra do ex-presidente brasileiro — que aproveita a viagem e assiste hoje ao clássico entre Real Madrid e Barcelona, ao lado do amigo Zapatero.
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