José Graziano da Silva
Valor Econômico
Alimentar 9 bilhões de bocas em 2050, quando a humanidade terá um contingente 35% maior que o atual, não é obra que se possa deixar ao improviso.
Um repertório ecumênico de iniciativas no plano da cooperação internacional e das políticas locais terá que ser acionado de forma progressiva e articulada para elevar a oferta mundial de alimentos em 70% até lá, conforme preconiza a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO).
Para que o alimento chegue à mesa de quem tem fome nenhum segmento da produção rural poderá ser descartado; nenhuma escala negligenciada.
Um dos requisitos dessa travessia é o salto de 60% no nível atual do investimento agrícola. Ele não ocorrerá se a ajuda internacional ao desenvolvimento não recuperar o foco na agricultura que hoje recebe apenas 4% dos recursos, contra 17% nos anos 80. Ademais, a equação não fechará sem forte parceria entre investimentos públicos e privados nos países em desenvolvimento, cujos governos devem assumir a segurança alimentar como política de Estado.
Sejam quais forem os cálculos prospectivos, a densidade dessa maratona está diretamente relacionada à capacidade de articular três dinâmicas: a) por razões ambientais e de esgotamento de fronteiras, a produtividade - leia-se, pesquisa, fomento e extensão rural- terá um papel preponderante no processo; responderá por 90% da oferta adicional prevista; b) America Latina e África, as duas últimas geografias com espaço para interligar o esforço de produtividade à incorporação de novas áreas, devem fornecer mais 120 milhões de hectares a esse mutirão planetário; c) ao contrário do que ocorreu na Revolução Verde, nos anos 50, desta vez a batalha da produção não poderá abstrair as intersecções com três modalidades de "fomes" então ignoradas: a "fome" de empregos; a "fome" de direitos sociais, sobretudo nas fronteiras rurais, e a "fome" de equilíbrio ambiental. A batalha da produção, ademais, não deve subestimar as intercorrências da especulação financeira sobre a segurança alimentar das nações.
Não há um modelo de negócio ou panacéia institucional capaz de assimilar todas as demandas embutidas nessa empreitada que definirá um pedaço do século XXI. É nesse sentido que a experiência brasileira emerge como uma referencia encorajadora. Longe de figurar como um modelo irretocável, com um histórico rural intrinsecamente avesso à glamourização, o Brasil soube combinar políticas pragmáticas e assim aplainar caminhos e estabelecer razoável complementaridade entre escalas distintas no atendimento da segurança alimentar e do mercado mundial de commodities.
O Brasil elegeu a agricultura familiar como protagonista e também investiu fortemente em pesquisa agropecuária
A "modernização conservadora" implementada na agricultura brasileira nas décadas 70/80/90, ao mesmo tempo em que multiplicou a produção de forma notável consumou em três décadas uma transição rural/urbana que a maioria dos países ricos levou um século para concluir. Um êxodo de 30 milhões de pessoas semeou periferias metropolitanas conflagradas e desigualdades sociais e regionais asperamente acentuadas no espaço rural.
A economia fixou suas duras circunstâncias, mas decisões estratégicas posteriores mostraram que por mais rigorosas que sejam as circunstâncias há sempre escolhas a serem feitas. O Brasil escolheu investir fortemente em pesquisa agropecuária, em políticas de crédito direcionadas e, com maior ênfase a partir do guarda-chuva de ações do Fome Zero, desde 2003, elegeu a agricultura familiar um protagonista relevante no combate à fome e à miséria.
Poucos países dispõem hoje de um escudo de segurança alimentar como o brasileiro, que acode a emergência da exclusão, mas cuida de superar a sua origem fortalecendo a base da pirâmide de renda, com a elevação do salário mínimo, bem como a agricultura familiar, assegurando-lhe crédito, assistência técnica e uma demanda cativa desdobrada em duas frentes relevantes.
Por lei, 30% da merenda escolar diária de 47 milhões de crianças e adolescentes deve ser adquirida junto aos pequenos produtores. Na outra ponta, o Programa de Aquisições de Alimentos do governo federal investiu R$ 3,5 bilhões nos últimos sete anos na aquisição de 3,1 milhões de toneladas de alimentos de 160 mil agricultores. Em média, 14 milhões de pessoas são beneficiadas com esses produtos todos os anos.
A contrapartida dessas políticas é que, desde 2003, a taxa de pobreza na área rural caiu de 52% para 33%; três milhões de pessoas saíram da miséria no campo (28 milhões em todo o Brasil) e a renda média da agricultura familiar aumentou 33%, contra 13% da média nacional.
Não menos lustrosos foram os resultados do agronegócio. O Brasil colherá este ano a maior safra de grãos da sua história (cerca de 157,4 milhões de toneladas). É líder em diferentes mercados e nas últimas décadas, sua agricultura registrou o maior ganho de produtividade do mundo, 3,5% ao ano, em ascensão. É esse repertório diversificado de avanços, e o conhecimento científico que lhe deu sustentação, graças às tecnologias da Embrapa assimiláveis pela grande e a pequena escala, que o país quer compartilhar com outras nações na maratona para vencer a corrida contra a fome nos próximos anos.
José Graziano da Silva está licenciado do cargo de Representnante Regional da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) para a América Latina e Caribe.
Nenhum comentário:
Postar um comentário