domingo, 2 de outubro de 2011

Sem o bode, o ar fica mais saudável


LIGIA BAHIA
O Globo

Provavelmente, ainda nesta semana, a regulamentação da EC29 será aprovada na Câmara Federal sem o item que a condicionaria à recriação da CPMF. Da Câmara, o debate sobre o financiamento para a saúde seguirá para o Senado, depurado de pesados penduricalhos que o prenderam a uma contabilidade de difícil compreensão. Depois de muito dito e desdito, ficou mais ou menos estabelecido o seguinte: "Precisa mais dinheiro para o SUS, mas tem que dizer de onde virá." A solução ficou no ar. Como nenhum cidadão comum será capaz de tirar da cartola uma fonte caudalosa de dinheiro e o pânico criado pela ameaça de elevação da carga tributária arrefeceu, novas alternativas e questionamentos poderão ser apresentados ao escrutínio público.

Sem o bode na sala, ou seja, isentando a saúde da responsabilidade exclusiva pelo aumento da tributação, respira-se melhor. A entrada de ar fresco estimula a rearrumação da bagunça. A primeira providência é pôr num canto, mas não esconder, as circunstâncias que nos trouxeram até aqui. O que foi aprovado na Constituição de 1988 - recursos muito mais vultosos do que os que estão em discussão para financiar a saúde - jamais saiu do papel. A emenda aprovada em 2000 definiu, em um contexto de enrijecimento do orçamento e garrote fiscal, vinculações orçamentárias para a saúde. Embora a emenda tenha sido melhor que o desfinanciamento, os percentuais de aportes da União, estados e municípios nunca foram integralmente cumpridos. Entre 2000 e 2006, a variação dos gastos públicos com saúde foi menor do que a do PIB real, exceto em 2003, o que nos conduziu na direção contrária à dos países que aumentaram despesas em função do aumento das atividades de prevenção e assistenciais e do envelhecimento de suas respectivas populações. O fim da CPFM em 2008, no momento em que se prometia o repasse integral de sua arrecadação para a saúde, abalou os alicerces do financiamento setorial, porém não apressou o apocalipse. Não houve retração dos recursos federais, possivelmente em função do repasse do aumento da alíquota do IOF, tampouco obtivemos o incremento necessário para efetivar o SUS. Os remendos não debelaram o quadro crônico de subfinanciamento da saúde. Como a verdadeira crise é deixar tudo igual, já se avistam sinais de que a depleção continuada pode comprometer a manutenção de conquistas da saúde pública brasileira. Basta mencionar que um fator estratégico para reduzir a letalidade de uma provável nova epidemia de dengue será a capacidade de classificação de riscos e intervenção de serviços de saúde.

A segunda medida, essencial para reordenar as relações entre causa e efeito que se confundiram no meio do caminho, é conceder um lugar de destaque ao direito à saúde e a respeito de que SUS se está falando. Não faz nenhum sentido apresentar uma conta a ser paga e não explicitar com clareza compromissos com a efetiva melhoria das condições de saúde. Durante anos a fio se sustentou que o SUS era um sistema para pobres. Aos poucos, os argumentos para legitimar a segmentação do sistema de saúde tornaram-se mais peremptórios. Dizia-se que a desigualdade estrutural da sociedade brasileira impediria a efetivação de uma política de saúde universalista. O SUS constitucional seria apenas uma utopia de uns, bem intencionados, mas destituídos de senso de realidade e poder. A classe média tradicional e a emergente passaram a acreditar piamente que pagam duas vezes pela saúde. Embora quem declare ao fisco um rendimento de cem mil e gaste dez mil com plano privado desconte 25% das despesas com saúde privada, esses valores sumiram. Não são somas desprezíveis, mas ficam submersas nas narrativas que tomam a exceção pela regra. De fato planos individuais para idosos são muito caros e oneram dramaticamente orçamentos familiares. No entanto, essas situações são menos frequentes do que as referentes a planos coletivos empresariais, cujos custos são compartilhados por toda a sociedade e também são passiveis de deduções por pessoas jurídicas e físicas.

E como se não bastasse a confusão acumulada em torno do quem tem e quem paga, ouvimos recentemente em alto e bom som um revival do estilo unicausal de explicação dos males de saúde. O slogan "o problema não é de dinheiro e sim de gestão" atraiu adeptos. Tem muita gente convencida de que a anemia da saúde decorre exclusivamente da corrupção dos políticos. Quem gastou saliva falando que as coisas se arranjariam apenas com mudanças gerenciais vai ter um baita trabalho para se desdizer. As comparações internacionais são úteis para evidenciar que os indicadores de desempenho econômico no Brasil são superiores aos de saúde. Países vizinhos com menor renda gastam mais com saúde do que o Brasil. Contudo, depois de tantas idas e vidas, não se conseguirá contornar, só com a exposição de novos números, o desafio que é deslocar a fé nas vantagens da vinculação entre benefícios à saúde e renda, essa sim completamente aderida à ideia sobre o poder balsâmico do livre mercado, para a perspectiva de nivelar serviços de saúde para todos.

Conciliar o conhecimento sobre as finalidades com a mobilização dos meios para alcançá-los exige muito mais do que bom-senso e boa vontade. A substituição do ideal do individuo autônomo e empreendedor e a desconfiança nos impostos pela concordância com políticas universais não são consensuais. De toda maneira, quando se deseja resolver um problema é preciso ser capaz de nomeá-lo. Ao devolver o bode para a sua origem - as políticas de ajuste fiscal - abre-se caminho para admitir que a desigualdade inviabiliza a democracia. Qual é o tamanho e qual a abrangência do SUS a que estamos nos referindo? A concessão de subsídios públicos ao mercado de planos de saúde e as duplas portas de entrada continuarão sendo apoiados por políticas governamentais? Deixando para trás um estilo de gestão baseado em promessas grandiosas e realizações mitigadas, fica mais fácil enunciar precisamente como o Brasil enfrentará riscos à saúde, e assim subordinar a definição do volume e natureza das fontes de recursos financeiros a uma corajosa avaliação e projeção da situação sanitária.
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