ROBERTO DaMATTA
O Estado de S.Paulo
Num desses dias, uma secretária do departamento onde trabalho anunciou:
- Professor, tem um padre da universidade federal YZ querendo falar com o senhor, posso passar a ligação?
- Sem dúvida, disse eu, pegando no fone com a atenção e a curiosidade de sempre.
- Aqui é o padre X, professor Roberto. Estou ligando para convidá-lo a tomar parte numa discussão sobre agricultura e "tecnovilas". O senhor aceita?
- Sim, reverendo, se entendesse do assunto, mas, infelizmente, dele nada sei.
- Modéstia sua, professor. Como é que um homem que escreveu um livro intitulado Tecnovilas diz isso? É claro que o senhor entende.
- Padre, meu livro não é sobre "tecnovilas", é sobre o pequeno cotidiano americano: o meu dia a dia de docente expatriado na Universidade de Notre Dame, em South Bend, Indiana, Estados Unidos. O título não é Tecnovilas, é Tocquevilleanas, uma humilde homenagem ao estudioso e político francês que, acompanhado do seu amigo, Gustave de Beaumont, viajou pelos Estados Unidos entre 1831-32 e escreveu um livro clássico sobre o estilo de vida americana, intitulado Democracia na América. Desculpe pelo título que o confundiu!
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Tal como as pessoas, os títulos dos livros enganam leitores, bibliotecários e autores. Um sujeito bem vestido e falante, quando devidamente aberto, revela-se uma toupeira ou um Evereste de empáfia. Um nobre ministro surge como um chefe de quadrilha feito por ONGs que desviam dinheiro público para um partido cujo nome remete a abnegados e virtuosos.
Meu colega e amigo, o cientista político Eduardo Raposo, ouviu de seu primo Lobinho a seguinte história: um sujeito chega a uma biblioteca e pede um livro de botânica. O funcionário prontamente lhe apresenta com um sorriso alvar Raízes do Brasil.
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Quando eu selecionei as crônicas para compor o livro Tocquevilleanas: Notícias da América, telefonei ao meu editor e amigo, Paulo Rocco. Na euforia daquele momento especial, pois a empreitada de escrever um livro nos envolve de todas as maneiras e, como disse melhor do que ninguém, Thomas Mann, trata-se de uma tarefa equivalente a uma "batalha, perigo no mar ou risco de vida, e nos aproxima de Deus em busca de auxílio, bênção e misericórdia"; eu mencionei um título: Notícias da América. Paulo Rocco adorou. Terminei a ligação ouvindo dele os augúrios de sucesso.
Coloquei o manuscrito no forno por uns dias, como sempre faço quando se trata de escrever para publicar - uma tentativa frequentemente inútil de evitar monstruosidades -, mas, ao retomar a obra, um anjo do mal meteu na minha cabeça que eu deveria homenagear o grande Alexis de Tocqueville. Se Heitor Villa-Lobos, disse-me a entidade, fez suas "bachianas" pensando em Bach, por que eu não poderia fazer umas "tocquevilleanas" pensando num autor desconhecido das ciências sociais brasileiras; um intérprete maior de problemas contemporâneos, mas que não é citado em nenhum dos clássicos nacionais, justamente para falar dos contrastes entre o Brasil e os Estados Unidos?
E, assim, devidamente impregnado pelo anjo, reli Democracia na América - como havia feito em 1974-79 - enquanto escrevia Carnavais, Malandros e Heróis - e inventei o tal "tocquevilleanas" imaginando (graças ao malefício do anjo) que minha mente era o mundo e que todos sabiam de sobra quem era Tocqueville.
Ledo engano!
Publicado o livro, descobri que as pessoas sequer sabiam pronunciar o título, que - conforme me revelou um profissional com sua saudável mistura de inocência e autoritarismo jornalístico - era "muito complicado". Foi quando descobri a mais crassa verdade pós-moderna: se a obra tem um título impronunciável, você não lê o livro. Vira um antileitor. Resultado: numa segunda edição, que em breve chega às livrarias, suprimi o solene "tocquevilleanas". Ganhou Tocqueville, que não precisa de minha homenagem e, imploro aos deuses, ganham os eventuais leitores. Pois debaixo do título Notícias da América não há como confundir nenhum entendido, leigo ou jornalista.
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Na esteira dos antileitores, voltei ao Raposo e ele relata que seu primo Lobinho havia feito uma grande descoberta. Na tal biblioteca onde Raízes do Brasil está na estante de botânica, O Idiota surge na de psicologia, A Interpretação dos Sonhos, na de esoterismo; Sobrados e Mucambos está catalogado como engenharia e Montanha Mágica, como astrologia. Já Memórias Póstumas de Brás Cubas entra como kardecismo; Lolita, na lista de livros para moças; A Guerra das Salamandras, em história militar; Cem Anos de Solidão, na prateleira de geriatria; O Cru e o Cozido, na de culinária, e Hamlet, na de receitas inglesas. Já Madame Bovary surge na de pornografia; Os Maias, na de etnologia centro-americana; As Neves do Kilimanjaro, no setor de clima e ecologia; as Viagens de Gulliver, no de turismo; O Poder e a Glória, no de política; e, por fim e para encurtar uma infindável história, Carnavais, Malandros e Heróis, inclassificável por não ser lido, é listado tanto nas obras devotadas às escolas de samba, quanto está na prateleira de fraudes e contravenções.
Tentei interpelar a diretora, mas desisti. Ela é "blindada"!
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Muito bom este texto.
ResponderExcluirAntes, falava-se que a leitura estava restrita a uma elite intelectual. Onde estão os intelectuais? E a elite?