sábado, 7 de janeiro de 2012

Bem-vindo ao ano 2600

O artigo abaixo nos dá uma boa idéia do quanto nosso mundo é diverso em termos de idiossincrasias, religiões, comportamento e orientação social.
Uma boa reflexão para os que refletem sobre a globalização.


Bem-vindo ao ano 2600 

ÁLVARO PEREIRA JUNIOR
FOLHA DE SP


Os festeiros de Colombo parecem em transe, dançam como se não houvesse gravidade

Desculpe você, que vive no passado -mas já estou no ano 2600. 
Porque faz 2.600 anos, segundo a crença, que Siddartha Gautama, o Buda, teve sua "iluminação". 
E porque era essa data, 2600, que dominava todos os cartazes e faixas e propagandas e anúncios no rádio e na TV em Colombo, capital do Sri Lanka, onde passei o Ano-Novo. E que Ano-Novo!

Avenidas lotadas, congestionamento caótico, gente, areia, poeira, maresia do oceano Índico, alta concentração de euforia e monóxido de carbono. Tuc-tucs (os triciclos motorizados, onipresentes aqui) descrevem trajetórias impossíveis, compartilham micro espaços, comportam-se ao mesmo tempo como onda e partícula (só a mecânica quântica pode explicar tamanho amontoado de carrinhos num espaço onde mal caberia um).

Nos hotéis deste país tão distante e pequeno (só um pouco maior que a Paraíba), misturam-se turistas russos, franceses, ingleses, italianos, canadenses e alemães, alemães, alemães (por alguma razão, mesmo no auge da guerrilha separatista, mesmo com o país semidestruído pelo tsunami de 2004, eles nunca pararam de vir).

Nos salões da Galle Road, a avenida costeira de Colombo, meninas cristãs desfilam de microssaia e saltos altíssimos. As budistas, menos exibidas, usam saris coloridos.

As diversas gradações do islamismo alternam-se entre o hijab comum, o xador estilo iraniano e a abaia (que, a um leigo como eu, parece só um pouco menos restritiva que a burca afegã).

Mas nas ruas, logo depois da meia-noite, com 2012 (ou seria 2600?) apenas começando, a história é outra. Não se veem meninas, nem gringos. Ao lado do Galle Face Hotel, pérola colonial de 1864, acontece um gigantesco festival de Ano-Novo, com os mais populares artistas cingaleses.

Por todos os lados, provocando chuva de poeira com o vetor invertido (sai do chão e sobe para o ar), grupos celebram o Ano-Novo em cenas que lembram as festas de rua afegãs tão comuns na TV. No caso cingalês, felizmente, sem os tiros de AK-47 para o alto.

Chegamos ao festival antes de meia-noite e meia, coração na mão depois de 15 minutos num tuc-tuc alucinado. Leva um tempo até entender a composição do público: 99,9% homens. E só alguns segundos a mais para perceber o estado em que se encontram: excitação descontrolada.

Em cima do palco, nenhum traço de melodia ou harmonia, como as conhecemos no Ocidente. As canções mais parecem mantras, o que talvez explique os estados de consciência alterada que induzem na plateia. 
Os festeiros de Colombo parecem em transe, dançam como se não houvesse gravidade. Miram os passantes com aquele olhar fixo tão característico dos indianos e cingaleses, e, em sua coreografia, mexem o pulso como se ele estivesse desconectado do antebraço.

Não há venda de álcool. Ninguém passa com um isopor clandestino. O que domina o ambiente são as barraquinhas de uma rede de fast-food halal (preparada segundo os preceitos muçulmanos). 
Mesmo assim, sem drogas nem bebida, sentimos que a chapa era quente. Eu não estava a trabalho e jamais cobri um conflito armado -mas, no meio da bagunça, lembrei do mandamento número um dos correspondentes de guerra: nunca se julgue indestrutível, nunca ache que já passou por tudo e que nada vai lhe acontecer.

Ou seja: hora de cair fora e deixar a festa só para a rapaziada local. E, também, de acordar, no primeiro dia de 2012 (ou de 2600?), nessa ilha linda, acolhedora e intrigante chamada Sri Lanka.

Que acabou da sair de uma guerra interna separatista de mais de 25 anos, mas que, pós-Ano-Novo, transmite ao turista iniciante uma forte sensação de placidez.

Que, literalmente, dizimou a guerrilha dos Tigres Tâmeis, que reivindicavam a criação de um Estado próprio. Mas que, nas ruas, apresenta a mais perfeita harmonia religiosa, templos budistas ao lado de mesquitas, igrejas cristãs pontuando de branco as ruas arborizadas.

Confesso: só fui entender a história do 2600 pesquisando na web, antes de escrever esta coluna. Aprendi que o ano budista de 2600 começou em maio de 2011. Assim, não entendi totalmente por que o Sri Lanka festejou tanto um ano já iniciado.

Mas ainda vou passar mais uns dias aqui. Falta muito a apreender.

Feliz 2600 -ou o que resta dele- para todos nós.
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