Saindo de férias
JOÃO UBALDO RIBEIRO
O Estado de S.Paulo
Este ano, como sempre, vou viajar nas férias. Mas desta vez acho que lamentarei um pouco o afastamento daqui do terraço. Há muito tempo não lhes conto os acontecimentos no terraço, há novidades. Herculano, o gavião que volta e meia fazia ponto na esquina do alambrado, sumiu de vez. Em compensação, estabeleceu-se nas redondezas o casal de sabiás Wanderley e Ademilde, que deve ter ninho aqui perto e apresenta alguns duetos admiráveis, de manhã cedo e ao entardecer. Instalou-se também um clã de bem-te-vis, chefiado por Arnaldão, bem-te-vizão parrudíssimo, maior que certos pombos, e por Hildete, sua esposa, igualmente fortezinha e disposta.
Pensando bem, Herculano pode ter sido escorraçado daqui por Arnaldão e Hildete e talvez mais alguém da turma de bem-te-vis. Bem-te-vi é jogo duro para qualquer um, inclusive gavião pequeno. Quem conseguir pegar num bem-te-vi tem que ter muito cuidado, porque ele vira o pescoço e dá umas bicadinhas poderosas, que furam a mão. Muitos gaviões do porte de Herculano se dão mal, quando se metem a besta com um bem-te-vi. O gavião localiza o bem-te-vi lá de cima, do meio das nuvens, assenta a mira, recolhe as asas para trás e mergulha em alta velocidade, na direção do que ele imagina ser sua presa. Enquanto isso, o bem-te-vi, cuja visão permite que ele enxergue quem vem lá de qualquer lado, fica na dele, como se não estivesse notando nada. Mas, quando o gavião chega quase a tocá-lo, ele faz uma manobra que o atacante, caça a jato e não helicóptero, não tem tempo nem equipamento para acompanhar. Aí o bem-te-vi fica por cima e desce a lenha no cocuruto do gavião, que chega a babatar no ar, meio desgovernado, para depois recuperar-se e se mandar de volta a seu hangar, certamente decidido a pensar melhor, da próxima vez em que topar com um bem-te-vi.
Mas a novidade interessante mesmo, cá no terraço, não é com o reino animal e, sim, com o vegetal. Receio ter de confessar que o ambiente criado aqui pelas plantas não condiz com a moral e os bons costumes. Admito que salacidade sempre foi geral, com a colaboração diuturna de um exército de polinizadores sem senso de propriedade e sem qualquer pudor, mas agora está passando dos limites. Me lembra uma árvore da casa de finado Jugurta, em Itaparica. Nunca vi essa árvore, não sei nem qual a espécie dela, mas era famosa. Segundo contavam, ela promovia tamanha safadagem que Jugurta e sua dele santa esposa, d. Nadinha, chegaram a pensar em derrubá-la, não o fazendo somente pelo pecado que é derrubar uma árvore. Quando ela florava, mais exibida que 200 rumbeiras de circo, cada flor mais indecentíssima que a outra, se oferecendo a beija-flores, morcegos, borboletas, mamangavas, abelhas, mosquinhas e toda a malta sem-vergonha que se acumplicia nessas horas, eles mandavam cobrir o quadro oval do Sagrado Coração de Jesus que ficava na sala, e não deixavam as crianças ver a descaração transcorrendo no jardim.
Aqui no terraço está assim. Assim, não, pior. Num dos vasos maiores, reside uma fruteira cítrica com problemas sérios de identidade, que resultaram numa situação constrangedora. Ela chegou ainda mocinha, como laranja-lima, mas nunca deu laranja-lima nenhuma. Sua primeira fruta era uma laranja sem caroço, insuportavelmente azeda. Da segunda vez, era uma laranja com caroço, bastante docinha. Mas, de repente, um lado dela começou a produzir, em ritmo industrial, limões galegos. Suspeitei que se tratava de enxertos, mas temo que seja a manifestação mais explícita do clima de promiscuidade reinante. A razão da suspeita é o surgimento, no mesmo vaso, de uma outra arvorezinha, cujos tronco e raízes já se entrelaçam com a tal cítrica que não resolve o quer ser na vida. Não tenho certeza, mas creio que é uma goiabeira e isso poderá não definir-se ainda durante minhas férias. Uma conclusão, porém, já se impõe. A verdade dói, mas tem que ser dita: é uma deslavada suruba vegetal e acho que publicar uma fotografia dela seria proibido em países recatados.
Melhor mesmo, pensando bem, é viajar, escapar um pouco deste ambiente carregado. Embora não seja fácil como pode parecer e requeira prática, minha intenção é não fazer nada. Somado a fortes traços genético-antropológicos, tenho um certo traquejo. Quando Caymmi e eu morávamos na Bahia, de vez em quando não fazíamos nada juntos, na casa dele. Um dia resolvemos dar uma pausa e compor um samba, mas só passamos um tantinho mais que 30 anos nesse trabalho. O tempo foi curto e aí ficamos apenas no estribilho que, aqui no Rio, cantávamos sempre que nos víamos.
Mas nem sempre as coisas se passam como a gente quer e tudo indica que, na minha condição de saltimbanco das letras, vou ser chamado a trabalhar durante as férias. Em telefonema da ilha, Zecamunista me comunicou que está criando o Comitê Proletário de Defesa do Vernáculo e eu, que, apesar de intelectual pequeno-burguês e alienado, pelo menos sei conjugar a maior parte dos verbos e não costumo errar os plurais, serei convocado para a luta.
- Eu não aguento mais! - disse ele. - Você sabe o que outro dia eu ouvi, lá em Espanha? Um xibungueta me disse "eu tinha trago o jornal do senhor, mas o senhor não estava". Eu tinha trago! Não é mais "trazido"! Isso é caso de paredão! Você tem que me ajudar nesse combate!
É, acho que o dever me chama, a situação se agrava. Num segundo telefonema, Zeca relatou o mais recente exemplo da língua atual, um novo particípio passado de "falar", que ele colheu numa roda de pôquer em Salvador.
- Eu tinha falo! - reclamou, a certa altura, um parceiro.
- Pois eu ainda tenho - respondeu Zeca. - Não muito fanático, mas tenho.
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