sexta-feira, 13 de agosto de 2010

SAIA DE BAIXO! Carta de uma esposa de piloto.

Recebi e não pude deixar de postar.
Uma singela homenagem aos meus amigos de classe e lide.



SAIA DE BAIXO!

Ser mulher de um piloto profissional é antes de tudo, ser uma especialista em extraterrestres.
Toda mulher que casa com um aeronauta entra para a aviação. Não tem como fugir, ou ela aprende a falar a linguagem dos tripulantes ou torna-se a burrinha da história.
Considerados turistas bem remunerados, os aeronautas hospedam-se em hotéis cinco estrelas, conhecem os melhores restaurantes e criam hábitos sofisticados, independentemente de suas vontades.
À força de perambular por aeroportos nacionais e internacionais, conviver com outros povos e outras línguas, conhecer hábitos, artes, artimanhas, e todos eles com etceteras,suas cabeças são bombardeadas a cada vôo com novos e irregulares conhecimentos.
Daí,quando eles atravessam o salão de um aeroporto com seus uniformes, que a maioria detesta, impecáveis e com aquele ar de quem vive num mundo inconsútil e sabe das coisas, trazem consigo uma aura de grande romantismo e charme; eles podem ser até barrigudinhos e feios, o charme é inevitável.
São assediados e incentivados a ter aventuras amorosas, como qualquer marinheiro. Isso não quer dizer que todo tripulante seja amante da comissária. Há exceções, não mais que o médico com a enfermeira ou o chefe com a secretária.
De um modo geral, são ligadíssimos a suas famílias, que são seu lado terráqueo. Suas mulheres convivem com este risco, assim como convivem com o risco de verem um programa de televisão ser interrompido para darem a notícia de que "acaba de cair um avião, assim, assim, voltaremos em instantes com maiores detalhes."
Um dia, ao ouvir uma notícia destas, uma amiga casada com um comandante ligou horários e possibilidades e desesperou-se. Ligou para a companhia sem se identificar, pedindo mais informações sobre o acidente. Quem atendeu, tentando acalmá-la, disse:
- Minha senhora, não se preocupe, era só um vôo de treinamento. Morreram só os tripulantes.
Claro que eu não vou escrever o que ela disse ao informante.
Quando um piloto morre em vôo é porque alguma coisa o traiu. A máquina, a natureza a percepção. Todo piloto morto voando, morreu à traição. Por isso, dói de forma diferente em todos os outros, sentir o companheiro traído - às vezes por tão pouco, apenas uma fração de qualquer coisa. Então, sufoca e deprime inquieta e magoa ter toda a vastidão e depender de milésimos e milímetros.
Daí talvez aquele algo diferente existente neles.
Quando eles chegam de um vôo, trazem nos sapatos a poeira do mundo, nos cabelos o pó das estrelas e nos olhos um cansaço cósmico.
Penalizados pelo diferencial de pressão atmosférica e pelo fuso horário, sentem-se exaustos de imensidão. Incompatibilizados com fronteiras, levam horas para adaptar-se ao micro dia-a-dia. Metade gente, metade ficção não podem, ao chegar de um vôo, ser recebidos de maneira prosaica.
Jamais os receba assim:
- O Jr. vai perder o ano!
-Roubaram aquele relógio que foi do seu pai!
-Hoje é dia 15 e o dinheiro já zerou!
De difícil convívio, fortes candidatos a neuroses e depressões, já saem do avião defasados de realidade. Mas esta realidade só pode ser ministrada em doses homeopáticas, sem o que, eles estuporam. Contudo, não há motivo para desesperar-se. Dentro daquelas inconfundíveis maletas que eles usam você encontrará toques de carinho. Uma revista italiana, um bombom suíço, um perfume francês ou uma escultura nigeriana.
Também poderá ouvir frases assim:
- Estava com tantas saudades e tanta pressa em chegar que larguei todas as porteiras do céu abertas.
Outra coisa que também os mantém profissionalmente de rédea curta: os exames periódicos. Qualquer profissional, por mais importante e sofisticada que seja sua área, forma-se, faz mestrado, cursos, mas nunca outro vestibular eliminatório.
Com o tripulante é diferente. Até os 40 anos, ele tem uma espécie de vestibular anual, depois desta idade passa a ser semestral. Lá vão eles para os rigorosos e altamente sofisticados exames físico, psíquico e técnico. Todos são eliminatórios. É mais uma dura realidade deste duro mundo aviatório.
Cortados de vôo se não preencherem 100% de cada requisito, eles têm uma segunda chance se, dentro de um rígido prazo estipulado pelo setor em que foram eliminados, conseguirem recompor-se integralmente.
Naturalmente, os leitores estão pensando:
-Mas é claro! A vida de muita gente depende das mãos e da cabeça destes senhores!
É, tudo bem!Então por que a sociedade é tão condescendente com os senhores médicos, senadores, deputados, vereadores e o até com o PRESIDENTE?
Por que nenhum candidato precisa fazer exame nenhum? Para fazer e acontecer com a vida e o dinheiro, não de alguns como os senhores passageiros, mas de todo cidadão, indefeso nas mãos deles. Por isso vemos o mundo nas mãos de incompetentes. Com raríssimas e honrosas exceções. Pensem nisso.
Então, de repente, os tripulantes têm que fazer greve para sobreviver decentemente.
Um tripulante em greve por melhores salários é uma coisa tão absurda como se os aviões entrassem em greve por uma melhor manutenção.
Para a segurança de vôo, nem tripulante e nem avião, podem ser mantidos com o mais ou menos; a sofisticação técnica e profissional só se mantém com o melhor. Cada dia mais.
Assim, se eu estiver viajando numa companhia, na qual os aeronautas estejam fazendo “operação tartaruga", peço licença ao senhor comandante pego o microfone e digo:
- Senhores passageiros, por favor, desapertem os cintos saiam devagar, desçam a escada e corram. Procurem outra companhia, porque esta está economizando em cima de sua segurança.
E você aí, que de avião só sabe quando olha para cima, saia de baixo...

TEXTO ESCRITO POR UMA ESPOSA DE COMANDANTE.
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Um comentário:

  1. Gostaria de apresentar os meus cumprimentos à autora do texto por sua peculiar percepção e sensibilidade em relação à profissão e às características da vida de um piloto de aeronaves. E também ao companheiro Jefferson por nos proporcionar esta leitura, a qual tive acesso por intermédio da minha esposa.
    Como piloto da Força Aérea, ex-inspetor piloto da Aviação Civil, e um viajante por natureza, pude identificar-me com muitas das observações do texto, e compartilhar sentimentos no desabafo.
    Com as minhas cordiais saudações,
    Nilton Ribeiro

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