sábado, 30 de outubro de 2010

Ética e República

Denis Lerrer Rosenfield*

O problema ético
O espetáculo apresentado pelo governo e pelo PT ganha contornos de comédia se a situação não fosse trágica para o país. As denúncias e os indícios de envolvimento dos atuais governantes com a corrupção tornam-se objeto de chacota, por envolverem “cuecas”, “malas” e, sobretudo, pela sucessão de diferentes versões oferecidas pelos mesmos personagens. Ora, são o “gado” e os “fornecedores” os destinatários dos altos saques nos caixas do Banco Rural e no Banco do Brasil, ora é o “caixa 2” do PT que financiava as campanhas do partido. A primeira versão, de tão pífia, durou apenas o tempo de sua fala, enquanto a segunda, embora parcial, já atinge a figura pública do PT, tornado um partido como os outros.

A questão reside em que a opinião pública passa a não acreditar realmente em nada, pois as ditas apurações não passam de um mero exercício de fachada, destinado a enganar os investigadores e a mídia em geral. Contudo, esse tipo de prática, e aqui reside a tragédia, termina por solapar as bases de um regime democrático, se não houver uma punição adequada dos infratores. Não basta “culpar” Valério e Delúbio, pois o problema é inerente à prática petista de governar. Se punições não forem exemplares, a democracia brasileira será enfraquecida.

A encenação e a forma
Uma questão moral tem conseqüências políticas das mais relevantes. Não se trata somente do descumprimento de uma promessa, por mais importante que ela seja. Tampouco da discrepância entre a intenção de um agente e o resultado de sua ação, como quando dizemos de uma ofensa ou de um dano causado a alguém: “desculpe-me, não tive a intenção”. O problema político da ética diz respeito ao modo de organização das relações políticas, da coisa pública. Independentemente da intenção do agente, ações morais, no plano público, se medem por seus resultados na encenação de um determinado comportamento. Ocorre, porém, que, nesta esfera, a encenação termina por dar forma à República, pelos resultados obtidos junto à opinião pública, que termina por aderir diferentemente às suas instituições. Não podemos esquecer que um regime democrático vive da adesão dos cidadãos às suas instituições. Se essas se corrompem, a adesão enfraquece e as portas se abrem a soluções de tipo autoritário.

Pense-se no impeachment do ex-presidente Collor. A corrupção desvendada em seu governo veio a se traduzir pelo fortalecimento da democracia, pois os cidadãos desse país participaram ativamente de um processo de punição e de responsabilização dos culpados. A pressão popular foi tanta que parlamentares até então aliados de Collor votaram pelo seu impeachment. E não o fizeram por convicção ou intenção, mas porque foram impelidos a agir assim por uma opinião pública que deu uma nova forma à República. Alguns desses parlamentares usufruíram mesmo da corrupção instalada, tendo sido os seus beneficiários. Pode-se dizer que o seu comportamento teve um componente ético do ponto de vista da cena pública, embora a sua intenção pudesse ser dita imoral. A cena pública tem o misterioso pendor de transformar vícios privados em benefícios públicos. Ética e República caminham juntas. 

Suprapartidário
A “ética na política” é um princípio republicano, suprapartidário. Quando um princípio desse tipo rege a vida pública, os partidos, independentemente de seus matizes ideológicos, devem a ele se adequar. Se o desobedecerem, se colocarão diante de uma situação moral de constrangimento junto aos seus eleitores e jurídica de infração às leis vigentes. Se os cidadãos pagam impostos é com a expectativa de que esses recursos sejam utilizados convenientemente, traduzindo-se por serviços públicos eficientes e de qualidade. Há uma expectativa cidadã no pagamento dos impostos que deve ser frisada e valorizada, pois se trata do modo mesmo de organização das relações políticas e estatais. Se essa expectativa é rompida, ela pode ter conseqüências sociais desastrosas, dando origem às mais variadas formas de violência. Se uma pessoa de poucos recursos, pagante de seus impostos nos próprios produtos que consome com dificuldades, observa na televisão como milhões de reais ou de dólares são apropriados por políticos e partidos, em maletas ou em cuecas, a indignação imediatamente aparece e ela pode também ter uma válvula de escape nas mais diferentes formas de violência social. Se um alto funcionário rouba, por que não poderia eu também roubar e ficar impune?

Exemplo
Eis porque o exemplo, do ponto de vista moral, é um dos mais poderosos meios de regramento das relações políticas. Se as ações humanas se pautam por bons exemplos, as relações sociais e políticas tendem a ser bem ordenadas, valorizando a moralidade pública, a liberdade e o Estado de Direito. Se as ações humanas se pautam por maus exemplos, as relações sociais e políticas são levadas à desordem, com o crescimento do crime, inclusive do crime organizado, à restrição das liberdades e à desconsideração para com o Estado de Direito.

Quando a impunidade vigora, a lei perde a sua força, a própria polícia se corrompe e os cidadãos ficam a mercê de si mesmos, não podendo contar com a segurança pública, que é uma tarefa primordial do Estado. Nesses momentos, não é raro presenciar propostas revolucionárias que procuram aproveitar uma tal situação para impor um outro tipo de violência, a política, que procura, em nome da transformação social, submeter todos os cidadãos ao império do despotismo, das soluções autoritárias ou, mesmo, totalitárias.

Mentira
A mentira não é apenas uma forma de ocultar algo, atos ilícitos ou imorais, mas pode ser também um instrumento político, usado por partidos para poderem avançar os seus projetos, independentemente de seu controle democrático. Há, portanto, o que se poderia chamar de um problema moral e de um problema político da mentira.

O problema moral surge quando políticos velam o que estão fazendo com o intuito de aproveitarem uma determinada situação para dela extraírem proveitos. Tal é o caso mais comum da corrupção, em que certos indivíduos ou partidos tiram benefícios de sua posição de poder com o intuito, por exemplo, de enriquecerem. São políticos que se pautavam pelo lema “rouba, mas faz”. O produto do roubo era normalmente utilizado para o enriquecimento pessoal. A repercussão política de uma tal prática consiste no enfraquecimento da cena pública, pois as instituições são apropriadas por alguns, perdendo o seu caráter universal. A coisa pública vem a ser apropriada privadamente.

O problema político se caracteriza pelo uso sistemático da mentira como meio de exercício do poder. O seu caso extremo se configura nos regimes totalitários, nos quais, graças à ausência completa de liberdade de imprensa e de expressão, os que detêm o poder o exercem sem nenhum tipo de constrangimento, impondo à população o que eles pretendem que ela creia. Há modos intermediários, que apresentam diferentes formas de autoritarismo, dependendo de sua realização. Em todo caso, podemos nomear uma determinada prática da mentira como leninista. Ou seja, ela se torna um meio não apenas de ocultamento dos reais desígnios da ação, mas também de imposição de uma certa concepção das coisas.

Pense-se nas primeiras reações da cúpula petista diante da corrupção escancarada por Roberto Jefferson e, sobretudo, pela mídia. Primeiro ato, houve a denegação dos fatos. A “entrevista” concedida por Delúbio, sob a proteção de Genoíno, foi de pura e simples denegação dos fatos. Mensagem implícita: nada aconteceu, o partido é ético e nós manteremos o mesmo projeto de poder. Segundo ato: o protagonista foi Delúbio quando, numa reunião em Goiânia, declarou que tudo decorria de uma armação da “direita”. Mensagem implícita: nada ocorreu, somos éticos e a direita está tramando a nossa derrota. Trata-se da doutrina do bode expiatório. Houve outros atos como o do “golpe”, que se encaixam na mesma análise, procurando tudo trazer para uma oposição direita/esquerda, tendo como pano de fundo a ameaça de uma mobilização popular.

A falta de credibilidade do presidente
O presidente Lula tem sido poupado por um setor da mídia, por seu partido, por uma parte do PSDB e do empresariado. Em linhas gerais, pode-se dizer que esse apoio se deve a duas ordens de razões, uma política e a outra econômica.

A política, pois a estratégia de alguns adversários consiste em desgastar lentamente o presidente para que ele termine o seu mandato enfraquecido, não tendo condições de disputar as eleições de 2006 em condições de competitividade. Ademais, evita-se que uma crise de governabilidade se traduza por uma crise institucional.

A econômica, pois essa blindagem do presidente visa, na verdade, a uma blindagem da política econômica. Os defensores dessa idéia partem do pressuposto de que uma eventual renúncia ou impeachment do presidente Lula se traduziria pelo rompimento da política macroeconômica em curso, com o conseqüente afastamento do ministro Antônio Palocci.

Acontece, contudo, que os indícios estão chegando perigosamente próximos do presidente. Relembremos apenas alguns fatos: a) o presidente foi comunicado do mensalão por Roberto Jefferson; b) foi também comunicado pelo governador de Goiás; c) José Dirceu declarou
que nada fazia à revelia do presidente; d) Silvinho Pereira e Delúbio freqüentavam o Palácio do Planalto e mesmo ali despachavam; e) Delúbio chegou a fazer parte de comitivas presidenciais, inclusive numa viagem à África; f) ligação umbilical entre Lula e o PT, e tantos outros fatos. E o que é o mais grave, o presidente Lula ora diz uma coisa, ora outra, sem nenhuma preocupação com a coerência. O uso
de sua “quase lógica” pode, cada vez mais, se traduzir por questões políticas de monta.

A sua declaração de Paris, segundo a qual todos os partidos são iguais e o problema do Brasil é estrutural, além de trazer “o partido da ética” para a vala comum, mostra o seu pouco comprometimento com a verdade, com a apuração dos fatos e, sobretudo, o expõe como fazendo parte de uma armação montada conjuntamente com Marcos Valério e Delúbio Soares.

Quando essa versão desmoronar completamente, ele será igualmente atingido por ela. Os seus malabarismos têm limites. Ademais, ele foi eleito para mudar tudo o que estava aí, principalmente do ponto de vista da moralização pública. Se “se acomodou” a elas, ele deixa de representar o papel para o qual chegou à magistratura suprema de nosso país. Ele cessa de ser um exemplo do ponto de vista ético, produzindo a descrença na população em geral e uma menor aderência do povo desse país às suas instituições. Não é só o PT que sai perdendo, mas a própria República.

*Filósofo


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