Veja - 25/10/2010
"O sucessor habitua-se rapidamente a pensar primeiro em si; dificilmente passará os próximos quatro anos tendo como prioridade o bem-estar e o futuro do seu antecessor."
Presidentes da República , mais cedo ou mais tarde , amanhecem um belo dia como ex-presidentes . Em geral é um choque . Para os que entendem , de verdade , que numa democracia não dá para ninguém ser presidente pelo resto da vida , o impacto é recebido com mais naturalidade e pode ser administrado de forma mais racional . Para os que se julgam seuperiores a todos os que vieram antes deles ou que possam vir depois , e só se levantam da cadeira porque a lei os obriga , a hora da saída é um terremoto interior . Na cerimônia de transmissão do cargo talvez façam esforços para demonstrar ao público que aceitam de boa graça o fim do seu período na presidência , sobretudo se conseguem eleger o seu sucessor . Mas , secretamente , acham que a regra do tempo fixo para os mandatos só é acietável em relação aos outros ; não se conformam que seja aplicada também a eles , pois não aceitam a idéia de que exista qualquer ocupação à sua altura .
No próximo domingo , com a definição de quem ficará em seu lugar a partir de 1º de janeiro de 2011 , começa para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a contagem regressiva que o levará dentro de dois meses , às realidades da ex-presidência . O presidente , por tudo o que tem dito e feito nesta reta final de campanha , dá a impressão de estar gostando cada vez menos da prespectiva d voltar para casa . Já avisou que não vai ” passar o bastão ” da Presidência ao sucessor , porque ” o bastão é do povo ” ; não explicou como , na prática , o povo iria utilizar o bastão que pretende lhe deixar , mas a conversa é de quem não quer largar o osso . Deu para se comparar , de novo , a Jesus Cristo , e garante que as derrotas dos seus adversários são ” vingança de Deus ” contra quem se opõe a ele . Cada vez mais , em seus discursos, diz que não vai ” admitir ” , não vai ” aceitar” , não vai ” deixar” que aconteça isto ou aquilo , como se o futuro do país estivesse sujeito à sua aprovação pessoal . O que fica , desta conversa toda , é a sensação de que Lula , no fundo , acha uma tremenda injustiça a necessidade de deixar a Presidência . É como se perguntasse: para que serve , então , ter 80% de popularidade , em vez de 30% , por exemplo , ou até de 1 % , se você tem de ir embora do mesmo jeito ?
O fato é que o presidente da República tem no momento duas possibilidades à sua frente , e nehuma é animadora . Uma vitória do candidato da oposição , José Serra , no turno decisivo das eleições seria tão ruim , do seu ponto de vista , que nem o próprio Lula , provávelmente , é capaz de imaginar as reações que poderia ter diante de uma calamidade destas . Uma vitória da candidata oficial , Dilma Rousseff , seria melhor , é claro , até porque ela sempre deverá ao presidente 100% dos votos que recebeu no primeiro turno e vai receber no segundo turno . É melhor , mas não resolve . Na verdade , ninguém resolve a vida de quem quer ficar mas precisa sair – e, se acaso alguém pudesse resolver , esse alguém certamente não seria o sucessor . No curto caminho que os presidentes fazem entre a porta do seu gabinete e a porta de saída do Palácio do Planalto , no dia em que passam a faixa , muito se perde e tudo se transforma ; ao colocarem o pé na rua , no primeiro instante de sua nova vida como ex-presidentes , o mundo já é outro .A mudança mais notável é a rapidez com que vão deixando de ser prioritários os esforços que as pessoas fazem para estar perto deles . Certas coisas , talvez a maioria , perdem subitamente a importância -índices de popularidade , por exemplo , servem bem pouco depois que se deixa a Presidência . Por mais que lhes devam o cargo , os sucessores , logo começam a descobrir seus próprios méritos; o que jamais faltará é gente à sua volta dizendo exatamente isso . Elogios ao ex vão se tornando mais raros ; a uma certa altura , passam a ser expressamente não recomendáveis . O sucessor não demora a se acostumar com a força da sua caneta . Habitua-se rapidamente , também , a pensar primeiro em si ; dificilmente passará os próximos quatro anos tendo como prioridade o bem estar e o futuro do seu antecessor .
Uma das mais célebres transformações registradas na literatura mundial está no conto A METAMORFOSE de Kafka; ali , como se sabe , o caixeiro-viajante Gregor Samsa , bom moço, e herói da própria família , acorda um dia transformado num gigantesco inseto . A partir daí , o que realmente causa angústia não é a metamorfose de Samsa ; perturbador , mesmo , é a mudança gradual e impiedosa nas pessoas que estão á sua volta . É para lidar com isso que presidentes da República a caminho da saída deveriam se preparar .
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