sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O silêncio dos intelectuais

O silêncio dos intelectuais
José Castello, jornal Valor Econômico, São Paulo, edição de 01.02.2008

Simone e Sartre em 1974: o sonho de uma sociedade melhor, diz historiador, empurrou a intelectualidade do pós-guerra "na direção do marxismo e, portanto, do comunismo" e foi aí que começou o grande impasse dessa geração. Poucas vezes a política influiu tanto na cultura quanto no pós-guerra europeu. O caso francês é exemplar. A cultura francesa do pós-guerra produziu grandes intelectuais, como Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Raymond Aron, Simone de Beauvoir, François Mauriac. Eles reinaram durante um período de 12 anos, que começou com a liberação em 1944 e perdurou até a invasão da Hungria pelos soviéticos em 1956. Boa parte deles, contudo, se celebrizou mais por suas polêmicas ferozes do que por suas obras. Na Europa do pós-guerra, a política tomou a cultura de assalto. O comunismo de Joseph Stalin, secretário-geral do Partido Comunista Soviético entre 1922 e 1953, ocupou o centro dos debates. Essa cultura impregnada e até adoecida pela política é o tema do historiador inglês Tony Judt em "Passado Imperfeito: um Olhar Crítico sobre a Intelectualidade Francesa no pós-Guerra".

Não é uma tarefa fácil nem está isenta, ela também, do risco dos preconceitos. Intelectuais do porte do filósofo Jean-Paul Sartre tiveram que se desdobrar para defender, em nome das idéias, o comunismo real de Stalin. Os fatos, muitas vezes, contradiziam seus pensamentos - mas intelectuais, como náufragos, estão sempre agarrados a seus livros e, mesmo em meio à pior tormenta, ainda acreditam que eles possam salvá-los. Na França, a tradição do intelectual engajado surgiu meio século antes do pós-guerra, em 1894, quando o capitão Alfred Dreyfus foi condenado sob a acusação de espionagem. Em defesa de Dreyfus, Émile Zola, o grande chefe do naturalismo, escreveu seu célebre "Eu Acuso". Escritores como Marcel Proust, Anatole France e Émile Durkheim imediatamente o acompanharam. Uma coisa, porém, foi defender o capitão Dreyfus das acusações (injustas) de traição; outra, bem mais difícil, era tomar partido a favor do regime stalinista.

Voz dissonante entre os intelectuais franceses do pós-guerra, Albert Camus, autor do célebre "O Estrangeiro", foi impiedoso com seus contemporâneos: "Toda idéia falsa termina em sangue, mas é, sempre, o sangue alheio. Por isso, alguns de nossos filósofos sentem-se à vontade para dizer o que lhes dá na veneta." Camus se aproximou de Sartre graças a "O Estrangeiro", romance de 1942; afastaram-se por causa de outro livro, "O Homem Revoltado", ensaio que Camus publicou em 1951. Durante a luta da Resistência, os intelectuais franceses cultivaram a imagem de contestadores e rebeldes. No entanto, diria Camus em 1951, quando chegou o pós-guerra a palavra resistência se tornou motivo de "riso de escárnio". A verdade é que, durante a guerra, muitos intelectuais tiveram uma posição ambígua, diz Tony Judt, e só mesmo uma grossa esponja sobre o passado pôde restaurar a dignidade de muitos. Em 1944, a questão já opunha, em férreo debate, Camus (favorável a uma delimitação urgente entre os que resistiram e os que se entregaram aos ocupadores) e François Mauriac, para quem dividir a França não era um bom negócio para os franceses.

O sonho de uma sociedade melhor, nos diz Judt, empurrou a intelectualidade européia do pós-guerra "na direção do marxismo e, portanto, do comunismo". Mesmo o existencialismo de Sartre, a princípio incompatível com o dogma marxista, foi impelido para o marxismo. Aqui começa, no entender do historiador inglês, o grande impasse dessa geração. De um lado, eles estavam encantados pela perspectiva de paz. Mas, contraditoriamente, apaixonaram-se pelo marxismo, que se baseia na idéia da luta.A paz, mostra Judt, veio contaminada pelo desejo de acerto de contas. A obsessão dos intelectuais em limpar seu passado colaboracionista radicalizou os espíritos. Endurecimento que se materializa na dura sentença de Simone de Beauvoir: "É um erro supor que se pode punir sem odiar." Depois da Ocupação, a idéia de justiça se mistura com a de vingança. Instala-se assim, diz o historiador, uma atmosfera de "terror político". Ambiente turvo, que dá razão à apavorante sentença de Molière: "Aqui, primeiro, eles enforcam o homem e, então, eles o julgam."

A repressão feroz praticada por Stalin deixou grande parte dos intelectuais europeus em uma difícil situação. A noção de justiça passa a ocupar o centro dos debates. O que é justo? O que é injusto? Do ponto de vista da ortodoxia, Judt lembra, o extermínio de hereges "é um objetivo sensato e, até mesmo, urgente". Não era fácil para os intelectuais europeus de esquerda criticar esses procedimentos. Além disso, basear os próprios atos na História é sempre um risco. "Apostar na História significa se munir de justificativas para agir no presente de forma que, segundo outros critérios, pareceriam indefensáveis", ele observa.

No ensaio "O Homem Revoltado", Camus foi uma voz isolada no combate da "violência progressiva". O mesmo sentimento ecoa na conhecida sentença do surrealista André Breton: "Como, no teu interior mais íntimo, podes suportar semelhante degradação humana na pessoa de alguém que era teu amigo?" A violência não é mais uma prática exclusiva de carrascos e monstros; ao contrário, é praticada, ou pelo menos aplaudida, por aquele amigo bonachão com quem você toma um vinho ou aquela senhora simpática que afaga os seus filhos.Camus foi um dos poucos que não esconderam o arrependimento por ter fechado os olhos à violência. Escreveu em seus "Diários": "Uma das coisas que lamento é ter feito concessões demais à objetividade. A objetividade é, às vezes, uma acomodação." Talvez os intelectuais não sejam só uma classe que todos adoram odiar. Mas também uma classe que adora odiar a si mesma, conclui Judt. Ainda hoje rupturas, brigas, cisões pontuam a rotina do mundo intelectual francês.

A grande questão proposta por Tony Judt em "Passado Imperfeito" é simples e dolorosa: terão os intelectuais aprendido? Terão mudado? "Os anos entre 1944 e 56 não foram uma era dourada para a responsabilidade intelectual, muito pelo contrário", lamenta o historiador. Ele avalia, porém, que a Paris de hoje ainda aprecia aquelas qualidades que constituem, a um só tempo, "o seu grande atrativo e a sua fraqueza fatal". Não basta estigmatizar, condenar ou abominar o passado: é preciso entender por que ele foi como foi."Passado Imperfeito" não pretende ser nem uma história das idéias nem uma história social da vida intelectual. Seu objetivo é mais restrito, mas talvez por isso mais fulminante: debater as espinhosas questões do "engajamento", da "responsabilidade" e da "escolha" que atormentaram os intelectuais do pós-guerra. E até hoje, ainda que com matizes diferentes, inferniza o mundo intelectual não só francês, mas europeu.
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