Entrevista Maria Celina d’Araújo
Para a historiadora, quem chegar ao Planalto recebe um Estado com alto endividamento,dependente do mercado para se financiar, e carrega o peso de muitas alianças partidárias
Gabriel Manzano
O discurso acabou, os marqueteiros vão para casa e, a partir de amanhã, a vida como ela é cai sobre os ombros do vitorioso. Um de seus rostos é um Estado endividado, que não tem dinheiro para investir e precisa se entender com o mercado. O outro, um pacote de alianças e acordos políticos a cumprir, sem os quais não governará. "Por isso, não estou tão segura de que Dilma Rousseff ou José Serra estejam oferecendo modelos diferentes de Estado", adverte a historiadora e pesquisadora da PUC-Rio Maria Celina d"Araújo. "Há limites estruturais, por exemplo, para uma política mais estatizante. E quem vencer terá uma bomba na mão, a bomba do endividamento, do câmbio, dos aeroportos, da Previdência..."
Estudiosa atenta das instituições e do poder no Brasil, Maria Celina entende que o País "está passando por um processo de novas oligarquias, junto com antigas que parecem ressurgir, e o poder continua precisando delas para ter votos". Mas a sociedade brasileira "também tem uma vocação para gostar do Estado, uma certa estadolatria. Não suportaria um processo para valer de privatizações. É um dilema."
O governo Lula, que vai chegando ao fim, "está mais próximo de Fernando Henrique do que de Getúlio", afirma a autora, que escreveu cerca de 20 livros sobre os presidentes brasileiros. O antigo caudilho "mudou o modelo, implantou uma política trabalhista". Lula tomou outra direção: "Abandonou suas promessas fortes, as reformas trabalhista, sindical e previdenciária, ao legalizar as centrais sindicais." Quem mudou o modelo foi o governo FHC: "O Estado não podia mais ser desenvolvimentista, porque estava falido, e precisou ir se entender com o mercado."
Por tudo isso, avisa a pesquisadora, é preciso cuidado para se avaliar como o novo presidente vai governar. "Dilma está ligada a um amplo arco de alianças, da extrema direita à extrema esquerda, e sua autonomia não será tão grande. E o Serra também não é um tucano convencional, liberal, que privatiza."
Como é o Brasil que o eleito de hoje vai receber para governar?
Um país com instituições sólidas, regras democráticas. Isso é muito, se compararmos com nossos vizinhos. Mas há também problemas sérios, que não tiveram espaço na campanha. Por exemplo, o Brasil não tem melhorado em seus indicadores de corrupção - todos os dados mostram que continuamos num patamar lamentável. Da mesma forma, a desigualdade: houve uma ascensão social, mas persistem muitas diferenças, como as de gênero e de etnia. Somos uma sociedade em que o trabalho da mulher vale menos, a presença da mulher no Congresso é pífia, para não falar dos negros.
A eventual chegada de uma mulher ao Planalto teria um impacto diferente nisso?
Se Dilma chegar lá, acho que muda pouco. Ela é uma candidata indicada e apoiada por um homem. Não entrou na política por méritos pessoais. E ainda representa um projeto do "continuar fazendo" - é a mulher que obedece ao que foi planejado e implantado por um homem.
O marketing atrapalhou o debate dos assuntos sérios na campanha?
Não entendo de marketing político. Mas o que sei é que esse tipo de campanha está ficando anacrônico, repetitivo. São as mesmas receitas, os mesmos recursos gráficos, desde os tempos do Collor. Não se fala de questões fundamentais como câmbio, juros - o Serra até tentou, mas a coisa não evoluiu. E não se discute que temos uma bomba na mão, do endividamento, do câmbio, os aeroportos, a Infraero, a Previdência. Os candidatos não querem tocar nisso porque significa cortar gastos.
A desculpa é que o eleitorado não gosta de temas complexos, não entende...
Acho que culpar o eleitor por uma campanha rasteira é um desserviço à democracia. Criticam o eleitor de São Paulo porque o Tiririca foi eleito e nada dizem do partido que o indicou, das instituições que aprovam essas manobras. Ora, a campanha é rasteira porque os marqueteiros acham que tem de mexer com as emoções e não com fatos. E não é só aqui. Nos EUA, na disputa entre Obama e Hillary Clinton dentro do Partido Democrata, cada um partia para desconstruir a candidatura do outro. Cabe à mídia, aos acadêmicos, puxar para que as coisas não sejam assim. Tivemos na campanha um mantra sobre privatização, sobre Petrobrás, uma discussão cheirando a naftalina. Se as privatizações são um problema tão grave, porque o governo Lula, em oito anos, não desprivatizou nada?
A propósito, a senhora vê na eleição de hoje dois modelos de Estado disputando o poder?
Não estou tão segura de que sejam dois modelos. No caso da Dilma, há um modelo mais estatizante, o do PT, que é um programa de partido, mas se ela vencer vai levar consigo o peso dos acordos que fez, que vão da extrema direita à extrema esquerda. Sua autonomia de voo não será tão grande. E o Serra também não pode ser visto como um tucano convencional, liberal, ele considera o Estado um importante fator desenvolvimentista.
A sra. tem mencionado que há no Brasil uma certa estadolatria, mas que há ""limites estruturais"" para uma política mais estatizante. O que significa isso?
A gente tem limites estruturais porque não tem capacidade de investimento. A taxa de investimento do Estado brasileiro é muito baixa, ele depende da iniciativa privada. Eu gosto de citar uma história: já tivemos um presidente, o Juscelino, que inaugurou uma cidade! De uns 15 anos para cá, o presidente inaugura sala de espera de aeroporto. Não consegue mais fazer, sozinho, uma Itaipu. Arrecada-se demais, quase 40% do PIB, e gasta-se mais ainda. Investir fazendo manobras contábeis? Isso tem limite. Proclamam a criação de grandes coisas, mas é só gogó. A gente sabe que as privatizações feitas dificilmente serão revertidas, o governo não tem como recomprar as empresas, como mantê-las.
Há quem diga, também, que não há mais o que privatizar.
Se a gente tivesse uma sociedade que suportasse mesmo um processo de privatizações, e um partido que levasse isso à frente, haveria muito o que privatizar. Toda a saúde, toda a Previdência, como fez o Chile, por exemplo. Mas temos uma sociedade com vocação para gostar do Estado. Há, sim, uma estadolatria. E o projeto político tem de se adaptar ao que essa sociedade quer.
As antigas oligarquias estão sumindo? Existe um novo arranjo no poder, entre o Estado, as grandes corporações e as estruturas sindicais?
Acho que se pode dizer que estamos passando por um processo de novas oligarquias, uma nova oligarquização do País. Não vemos mais o coronelismo descarado da Primeira República, agora há uma certa convergência de empresários, banqueiros e sindicatos de trabalhadores em torno de projetos do governo. Mas é bom lembrar que há oligarquias também na oposição. Quanto aos empresários, leve-se em conta que eles são pragmáticos, o que querem é que tratem bem as suas empresas.
Isso é obra do presidente Lula?
Vale a capacidade do presidente, sim, para construir essa aliança. Mas isso é possível porque o Brasil vive um momento de expansão, de novos negócios, uma internacionalização de seu empresariado - um processo que começou nos anos 90. E, pelo lado dos trabalhadores, é por uma questão ideológica, o Lula faz uma política benéfica para os sindicatos. Mas as propostas fortes dele, de reforma sindical, trabalhista, foram abandonadas em 2004, quando ele legalizou as centrais sindicais. Não se toca mais nesse assunto e em troca de tudo os sindicatos não fazem mais contestações. Agora, esse amplo acordo funciona enquanto todo mundo estiver ganhando. Na hora em que uma parte se sentir lesada, isso acaba.
Getúlio Vargas fez, em seu tempo, uma grande arrumação política. Que comparação se pode fazer entre Lula e ele?
Acho que o governo Lula está mais próximo de Fernando Henrique do que de Getúlio. Este se marcou por inovações, uma política trabalhista, por inaugurar direitos - embora não inaugurasse todos. O Lula tem um vínculo, é parte disso, mas não criou uma legislação importante, um novo modelo de desenvolvimento. A gente continua patinando em juros altos. O Lula está mais próximo de FHC no sentido em que este marca o momento em que o Brasil mudou.
Mudou em que sentido?
Com FHC o governo brasileiro deixou de lado essa história de que o Estado podia ser desenvolvimentista. Não podia, estava falido. Inaugurou uma era econômica mais voltada para o mercado, agora tem de negociar com ele. O fato é que a Era Vargas, do ponto de vista da economia, acabou. Pode até renascer, mas por enquanto não renasceu.
O lulismo vai continuar sem Lula?
Isso é futurologia. Acho que o lulismo, para existir como fenômeno histórico, vai ter de esperar um pouco mais. Eu sei que o getulismo existe porque ele passou no teste do tempo, da história. Vamos ver a imagem e a popularidade de Lula fora do poder. O lulismo hoje é associado a transferência de renda, não a um conjunto de políticas sociais expressivas.
A senhora partilha do receio de que um eventual governo Dilma possa estimular práticas mais autoritárias?
No Brasil, algumas pessoas acreditam que o Estado é melhor que a sociedade. Isso é parte da plataforma da esquerda mais tradicional. Mas essa é uma opinião em meio a muitas outras. O que temos a nosso favor no Brasil de hoje é uma grande vitalidade da opinião publica. Instituições fortes que, apesar de tudo, em momentos mais críticos levantam a voz.
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