CARLOS ALBERTO SARDENBERG
O Estado de S.Paulo
Imagine que você tem uma propriedade rural com terras férteis, a uma distância razoável de um centro urbano populoso. Você pode cultivar ali hortifrútis, em associação com vizinhos, para ganhar volume, e abastecer o rico mercado próximo. Problema: não há estradas, apenas picadas pelas quais mal passa um jipe.
Suponha agora que o governo do Estado construa ali uma estrada vicinal, com bom asfalto, larga o suficiente para a passagem de furgões refrigerados. O negócio dos hortifrútis está viabilizado - ou qualquer outro negócio, de flores, por exemplo - e sua propriedade ganhou uma clara valorização.
E há meios de medir esse ganho privado com uma obra pública. Em casos assim, o governo paulista vai cobrar, sim, uma taxa sobre essa valorização - conforme anunciou o secretário estadual da Fazenda, Andrea Calabi, em entrevista ao jornal Valor na terça-feira passada.
O secretário citou outra hipótese. Imagine empresas instaladas em São Caetano, com oferta de transporte apenas local. Então, chega ali ao lado um belo trem de passageiros que parte de São Paulo, capital, e passa por alguns bairros do ABC. Obviamente, pelo menos os terrenos daquelas empresas ganham uma valorização extra. E têm de pagar a taxa.
Parece justo, não é mesmo? Uma contribuição de melhoria pode ser o nome da coisa que o governo quer cobrar. Mas por que o cidadão, as famílias ou as empresas não podem cobrar do Estado uma "contribuição de piora"?
Isso mesmo. O governo provoca malfeitorias específicas e universais. Você construiu sua residência num bairro tranquilo, e depois de um certo tempo sua casa começa a sofrer com enchentes, consequência de obras feitas ou autorizadas pelo Estado. Ou o bairro se tornou um inferno de trânsito, poluição e barulho por causa de uma ocupação desordenada, irregular e não coibida pela autoridade pública.
Para falar a verdade, se ampliarmos o olhar, o Estado no Brasil é mais malfeitor do que benfeitor. Pagamos, por exemplo, impostos elevados para ter um serviço público de saúde universal, gratuito e de qualidade, garantido pela Constituição. Se o governo entrega um serviço insatisfatório e, portanto, não cumpre a Constituição, os cidadãos e contribuintes não têm o direito de cobrar uma indenização, um ressarcimento ou coisa parecida?
Nada menos que 45 milhões de pessoas pagam planos de saúde privados, por não confiarem no Sistema Único de Saúde (SUS), administrado pelo Ministério da Saúde. Aliás, nem o pessoal que cuida do SUS confia no serviço que presta. No ano passado, o Ministério da Saúde gastou cerca de R$ 100 milhões pagando planos de saúde privados para seus funcionários.
Ora, essas pessoas que recorrem ao sistema particular deveriam receber a "contribuição de malfeitoria", pois estão pagando duas vezes pelo direito constitucional: os impostos e as prestações do seguro.
Mas ninguém está pensando nisso. Ao contrário, o ministro da Saúde quer cobrar dos planos de saúde quando algum segurado, por qualquer razão, é atendido pelo SUS.
Isso parece fazer sentido. A entidade de plano de saúde é uma instituição privada, que visa ao lucro. Se o seu segurado, seu cliente, vai ao SUS, então a seguradora deveria indenizar o sistema público. Ou seja, remunerar o SUS pelo serviço prestado, assim como a seguradora paga um hospital privado para que este atenda seu cliente.
Certo?
Errado. O segurado, o cidadão, tem o direito constitucional de ir ao SUS no momento em que quiser. Se ele, por segurança, achar melhor se garantir com um seguro privado, o governo não pode puni-lo por isso.
Sim, punir, porque, se a seguradora ou o plano de saúde precisar remunerar o SUS, isso é custo adicional, que será repassado aos clientes.
O pessoal do governo faz um discurso ideológico: as seguradoras privadas, exploradoras da saúde, querem que o SUS atenda de graça seus segurados.
Mas o segurado é, antes, cidadão. Pagando ou não o plano privado, continua tendo direito ao SUS. Assim como o cidadão que resolve pagar um fundo de pensão privado continua tendo direito ao INSS. Ou como a pessoa que estuda em escola privada mantém o direito de entrar na universidade pública. (Aliás, nem é bom falar; daqui a pouco vão querer proibir.)
Na verdade, essa ideia de cobrar das seguradoras privadas é simplesmente mais uma forma de tomar "contribuição" da sociedade civil. Revela também uma onda de estatismo ou, visto pelo outro lado, uma bronca contra tudo o que é privado, especialmente o bem-sucedido.
Depois da crise global de 2008-2009, iniciada na pátria do capitalismo, o pêndulo voltou para o lado do Estado. Intervenção do Estado na economia passou a ser a saída mágica.
E, de fato, houve muitas intervenções que funcionaram. Mas no Brasil essa onda deu num viés antiprivado e no entendimento de que a visão moderna é entregar estatais e mesmo grandes companhias privadas aos correligionários políticos.
Neokeynesianismo é entregar a vice-presidência da Caixa Econômica Federal ao peemedebista Geddel Vieira Lima porque... ora, porque ele perdeu a eleição e precisa de um cargo para continuar na política.
Enquanto isso, onde estão os aeroportos, por exemplo? A Infraero é outra que deveria nos pagar uma "contribuição de malfeitoria". No meio disso, a presidente Dilma Rousseff anuncia que pretende conceder aeroportos a empresas privadas. É por necessidade, não por ideologia: se deixar por conta dos companheiros, vamos ficar todos amontoados nos estádios e nos aeroportos da Copa.
A produção brasileira marcha para o exterior:: José Roberto Mendonça de Barros
Encerrei há um mês minha coluna dizendo que é possível que em alguns semestres a inflação brasileira caminhe para o centro da meta (4.5%). Entretanto, isto só acontecerá se for precedida por uma política monetária e fiscal mais robusta, e ainda assim o tempo para convergência será mais longo do que o admitido pelas autoridades.
Entretanto, imaginemos que a convergência ocorra em algum momento. Aí então a economia poderá crescer mais de 6% ao ano, sem desequilíbrios, certo?
Errado, a meu ver. O Brasil não consegue crescer mais que 4-4.5% sem gerar desequilíbrios como a alta da inflação, como já ocorreu em 2004, em 2008 e tal como agora. Além do baixo nível de poupança, decorrente mais do que tudo do excessivo gasto corrente do governo, o sistema de produção, e especialmente a indústria, está perdendo firme e rapidamente sua capacidade competitiva, por crescentes pressões de custo que só parecem piorar com o tempo. O Brasil se transformou num país caro e difícil para se produzir, especialmente quando medido em dólar. A pesquisa Doing Business do Banco Mundial mostra as crescentes dificuldades de se produzir no Brasil.
Já mencionei neste espaço mais de uma vez as principais razões da perda sistêmica de competitividade, exposta pelo real valorizado. Os custos sobem em virtude de:
1- uma contínua elevação da carga tributária, fortemente baseada em impostos indiretos. A maior parte dos setores paga algo da ordem de 40% do valor adicionado, chegando mesmo a 40% do preço final do bem. O sistema não é de valor adicionado e os créditos de impostos não são recuperados; a guerra fiscal entre estados gera distorções e custos malucos; mesmo impostos regulatórios, como os de comércio exterior e o IOF, acabam por ser geradores de receita; os custos parafiscais são enormes.
2- gastamos em logística mais que nossos principais competidores (pelo menos 50%), para serviços medíocres.
3- os custos de energia não param de subir. Morro de rir quando autoridades falam de modicidade tarifária. Nossa indústria tem uma das energias mais caras do mundo e vai subir ainda mais, tanto pela elevação dos adicionais à tarifa (CCC, RGR), quanto pela crescente importância da energia térmica, muito mais cara.
4- a oferta de mão de obra secou, os custos estão explodindo e vão subir ainda mais, pois a demanda anda muito adiante da formação de pessoal. Calculamos na MB que o salário real inicial (Caged), acumulado nos últimos 12 meses até janeiro de 2011, subiu quase 11% no comércio, 6,6% na indústria e 6% na construção civil.
5- a regulação no Brasil é, em geral, excessivamente detalhista, causa muitas vezes custos desnecessários para as empresas e se altera com frequência, inclusive modificando contratos em vigor. Também estamos longe de conciliar a construção de novos projetos e a defesa do meio ambiente. Isto vale para as três esferas de governo.
6- o setor público vem perdendo eficiência, por seu gigantismo, pelo aparelhamento e excesso de patriotismo da direção das organizações. Cito três problemas visíveis a olho nu: Correios, Infraero e Eletrobrás. Esta última empresa ambiciona ser a Petrobrás do setor elétrico, o que seria risível se não fosse trágico, dada sua baixa geração de caixa e a má qualidade dos investimentos.
7- finalmente, o real está claramente valorizado.
A elevação dos custos, decorrentes dos fatores acima mencionados, poderia ser superada com um conjunto de reformas de alguma envergadura. Nada mais distante da realidade, antes de tudo porque o gigantismo do estado, a ampliação do contingente de funcionários, a criação de novas empresas, a má qualidade da gestão e outras coisas mais não são casuais. Ao contrário, resultam da visão de mundo e da forma de operar da coalizão que detém o poder. Gasto é poder e isto exige dinheiro, o que nos leva aos crescentes impostos.
Como resultado deste processo, a produção de bens no Brasil (agricultura e indústria) rachou em dois pedaços, e ambos procuram o exterior. De um lado temos as cadeias de recursos naturais (agronegócio, minérios e metais, petróleo), setores tornados competitivos pela sistemática aplicação de tecnologia na produção e pela forte demanda internacional, atual e futura, por alimentos e energia. Estes setores crescem muito baseado nas exportações, onde as altas cotações compensam os custos brasileiros. Entretanto, mesmo aqui se notam dificuldades: por exemplo, não existe nenhum projeto novo de alumínio viável no Brasil, dado o elevado custo da energia elétrica. O país vai produzir e exportar bauxita e alumina, e nada mais. O mesmo acontece com outros metais.
O remanescente da indústria, como se sabe, vem perdendo a competição internacional e é cada vez mais espremida no mercado local pelas importações mais baratas. A saída clássica para situações como esta passa por inovações, maior produtividade e menores custos. Ora, os estudos mostram que, com poucas exceções, nossa indústria não é particularmente inovadora e sua produtividade total não vem crescendo muito. Logo, só existe uma solução para se manter competitivo: elevar as importações, e não brigar contra elas. Partes, peças, conjuntos, matérias primas e até produtos finais passaram a vir do exterior. Minha percepção, corroborada por executivos da área de crédito e por industriais, é que este processo ganhou enorme vigor no ano passado e está apenas no começo. É por isto que a produção industrial não cresce; o que cresce mesmo são as importações.
Existe mesmo uma versão radical do descrito acima: conheço vários casos onde se estuda e investe em novos destinos (Uruguai, Paraguai, Peru, Colômbia, Caribe, México e outros), uma vez que países como Argentina e China se mostram muito difíceis de operar. Nestes novos locais atraem os impostos, a energia e o custo da mão de obra mais baixos. A produção visa atender o mercado mundial, inclusive o Brasil.
Em resumo, a produção de bens caminha para o exterior: nos setores competitivos o coeficiente de exportações vai seguir crescendo (o que é bom); nos setores menos competitivos o coeficiente de importações vai seguir crescendo (o que não necessariamente é bom).
Existe também outro movimento: muitos empresários estão migrando da indústria para a área de serviços. Esta não tem, em geral, concorrentes importados baratos (o turismo é uma das exceções) e é menos regulado. O próprio IPCA mostra esta dinâmica: bens de consumo duráveis têm quedas absolutas de preços enquanto os serviços caminham para crescer mais de 9% neste ano.
Finalmente, não se muda isto em pouco tempo. Reformas pontuais pouco alteram o conjunto, menos ainda a escolha de campeões nacionais. Como mostra o caso do recente crescimento alemão, a recuperação da competitividade resulta de um esforço nacional.
Para a indústria o ambiente vai piorar antes de melhorar; para as commodities e serviços as oportunidades compensam as ineficiências. O resultado é um crescimento de 4,0%.
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