segunda-feira, 11 de abril de 2011

Democracia e liberdade de imprensa

Denis Lerrer Rosenfield
O Estado de S.Paulo

A América Latina apresenta uma situação bastante curiosa, pois há uma tendência crescente a dissociar a liberdade de imprensa e dos meios de comunicação em geral da democracia. É como se o fato de realizar periodicamente eleições, frequentemente com abusos de poder ou simulacros de igualdade na competição partidária, fosse suficiente para um país ser, sem mais, qualificado como uma democracia. Mas um aspecto da maior importância é simplesmente desconsiderado: as condições de exercício da democracia, como a liberdade de pensamento e de expressão, no seu sentido mais amplo, terão sido observadas?

Uma democracia, no sentido político do termo, só cobra o seu pleno significado como realização de direitos civis, que são, assim, observados. Dentre eles devemos destacar a liberdade de ir e vir, a liberdade de organização sindical e partidária, a liberdade de pensamento, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa e dos meios de comunicação. Um Estado que não observa esses direitos civis, por mais que procure encobrir os seus atos como "legais", nada mais é do que uma ditadura explícita ou em via de se consumar.

Antes, no entanto, de atentarmos para casos próximos a nós, seria interessante recorrer a exemplos históricos das sociedades que fizeram a experiência do socialismo. Tomemos o caso dos países do "socialismo real", como a antiga Checoslováquia, o seu exemplo valendo para todos os demais. No início de suas manifestações, na década de 1960, por mais liberdades, que culminaram com a invasão das tropas comunistas soviéticas, os cidadãos checos não lutavam para eleger seus governantes, mas para poderem livremente expor seus pensamentos. Propugnavam uma imprensa livre, combatiam para poder expressar suas opiniões.

Muito tempo depois, quando do desmoronamento da União Soviética, com seus reflexos em todos aqueles países, muitos dos contestadores do comunismo/socialismo continuavam ainda lutando por direitos civis, por estimarem, naquele então, que as liberdades políticas não estavam no horizonte próprio, oprimidas que se encontravam pelos respectivos Partidos Comunistas e seus aparatos policiais. Para eles, tratava-se de um direito básico, condição, por assim dizer, de todos os demais. Aqueles que se recusavam a conceder tais direitos, pretendendo guardar o monopólio do poder, eram os que temiam a propagação política das liberdades civis assim conquistadas. Não há nenhum país "socialista" ou "comunista" que tenha reconhecido os direitos civis - em particular a liberdade de imprensa e expressão -, salvo em seu ocaso.

Nesse sentido, o mundo político do século 20 tinha uma vantagem sobre o do século 21: a clareza. Os socialistas, com diferentes usos de retórica, eram contra a liberdade de imprensa e dos meios de comunicação em geral, não escondendo seu propósito de silenciá-los. Os atuais, porém, são mais ardilosos: eles silenciam a liberdade de imprensa em nome da "verdadeira" liberdade de imprensa! Pervertem a democracia em nome da democracia!

Exemplo particularmente paradigmático é o fato de o presidente venezuelano, Hugo Chávez, autocrata assumido, ter recebido da Universidade de La Plata, na Argentina, um prêmio de reconhecimento por seu "trabalho" em prol da liberdade de imprensa. Ou seja, um liberticida é agraciado por "seu apreço pela liberdade de imprensa". Um protoditador que silencia empresas de rádio e televisão, ocupa despudoradamente a mídia, aniquila o Estado de Direito em seu país é "reconhecido" pelos "socialistas" como digno defensor da liberdade de imprensa. O deboche é total. E o pior de tudo é que não se trata de um programa de humor, nem mesmo de humor negro!

O prêmio, ademais, foi concedido por uma universidade, que se desonra, evidentemente, como lugar por excelência da liberdade de pensamento, compactuando com os que procuram, por todos os meios, sua eliminação. Um reitor desse tipo deveria ser nomeado pela presidente Cristina Kirchner para presidir a Comissão Pública de Censura. Pelo menos as coisas estariam no seu lugar!

A própria Cristina Kirchner, aliás, empreende luta ferrenha contra um dos mais importantes conglomerados de comunicação da Argentina, o Grupo Clarín. Recentemente, o jornal El Clarín não pôde circular por causa de piquetes organizados por sindicalistas peronistas, a serviço do mesmo grupo político. Vale simplesmente a força, tendo até ordens judiciais sido descumpridas. A polícia, por sua vez, observou o ato de violência sem agir.

Há uma espécie de tolerância com esse tipo de atos que é extremamente preocupante. Alguns fazem o "torto" - para não dizer "esquizoide" - raciocínio de que, como há eleições nesses países, tudo pode, então, ser resolvido. O problema é, porém, muito mais grave, porque as próprias eleições estão sendo deformadas, graças ao progressivo controle político dos órgãos de imprensa e de comunicação em geral e, de maneira mais precisa, do processo de formação da opinião pública.

Tais exemplos deveriam ser levados seriamente em consideração em nosso país, pois no governo anterior eles começaram a ser imitados. Tivemos uma sucessão de iniciativas e conferências nacionais que compartilhavam o mesmo princípio de que deveria haver um controle de conteúdo, de que deveriam ser levadas em conta propostas de uma sociedade civil - manipulada, diga-se de passagem - que instalariam a "verdadeira" liberdade de imprensa. Estamos diante do mesmo ardil, o de suprimir as liberdades em nome da "verdadeira" liberdade. São crias do mesmo projeto autoritário.

Se é bem verdade que o Brasil precisa de uma nova legislação para o setor de audiovisual e telecomunicações, pois as leis dessa área datam da década de 70 do século passado e nesse meio tempo houve toda a revolução digital, por outro lado convém não confundir a necessária modernização do setor com a instauração velada de novas formas de silenciar os direitos civis.

PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR 

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