JORNAL DO COMMERCIO (PE)
A circulação do Clarín de Buenos Aires com a primeira página em branco é a mais grave manchete, sem palavras e sem imagens, dos seus 65 anos de existência, e simboliza o momento de tensão social que vive a Argentina, como antessala da eleição presidencial de outubro. A capa em branco foi o protesto contra o bloqueio de sindicalistas que impediu o jornal de circular pela primeira vez num domingo, quando a tiragem do Clarín é superior a 700 mil exemplares. O motivo aparente foi um movimento trabalhista interno, em segundo plano o anúncio de que a edição traria reportagem sobre investigações em torno do patrimônio de Hugo Moyano, secretário-geral da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), mas há muito mais por trás desse atentado à liberdade de informação.
A razão mais visível seria suficiente para expor um dos lados podres do sistema, quando se conta a história de Moyano, que fez do sindicato dos caminhoneiros um instrumento de ascensão pessoal, chegou ao posto principal da CGT, fez-se peronista, passou a partilhar o poder e expor níveis de enriquecimento desproporcional à sua condição de caminhoneiro e líder sindical. Agora, à frente de sua poderosa Confederação, atenta contra a liberdade de imprensa com a tolerância conivente do sistema, por todas as razões que se queira imaginar: desde um presumido respeito à ação sindical à conhecida indisposição da presidente Cristina Kirchner com a imprensa. No ano passado, a presidente entrou em choque com o Clarín e La Nación, acusando esses jornais de terem adquirido a principal produtora de papel do país com a ajuda da ditadura militar, que teria torturado os proprietários da fábrica. Daí foi um passo para os opositores associarem a ação sindical ao projeto de poder da presidente, agora ameaçado até por segmentos internos do Partido Justicialista, como o peronismo federal.
Muitas manifestações vinham sendo realizadas nas portas das oficinas onde esses jornais são impressos, mas a iniciada no sábado e que impediu o jornal de circular levou ao extremo esse conflito, reacendendo velhas feridas que colocam o grupo do Clarín no olho do furacão. O maior de todos os incidentes foi a prisão da diretora Ernestina Herrera de Nobre, viúva do fundador do jornal, em 2002, sob a acusação de adoção irregular de filhos de desaparecidos políticos, vítimas da ditadura. Essa prisão, fruto de uma ação impetrada pelas Avós da Praça de Maio, colocou o jornal numa posição de sintonia com a ditadura militar, o que sempre é alardeado nos confrontos políticos como os que estão em curso, tendo em vista, no primeiro plano, a atividade jornalística ameaçada por um sindicalista suspeito de corrupção, e, no pano de fundo, a eleição presidencial que se aproxima.
Tudo isso agrava a liberdade de imprensa no país vizinho, com reflexo em todo continente, em especial sobre seu principal parceiro comercial, o nosso País, e sobre o Mercosul. Oficialmente, a presidente argentina se declara pela ampliação desse mercado, como fez no primeiro encontro com Dilma Rousseff, em janeiro. Mas por trás da cortina oficial o que se assegura é que o bloco comercial está se fragilizando com as barreiras comerciais na Argentina para impedir o avanço das exportações brasileiras. Vazamento de documentos através do Wikileaks revelou, inclusive, que no governo Lula a Argentina agia nos bastidores atrás da boa vontade comercial dos Estados Unidos, enquanto para a plateia aparecia como firme parceira do nosso governo, quando o Brasil endurecia as relações com os norte-americanos, principalmente em questões que nos deram ganho de causa na Organização Mundial do Comércio.
Esse pano de fundo está hoje mais exposto, entretanto, o que deve prevalecer é a preocupação com mais esse grave atentado à liberdade de imprensa, sem a qual não será possível ter uma América Latina fortalecida o bastante para superar as divergências e dialogar, sem submissão, com Estados Unidos e Europa.
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