RENATO JANINE RIBEIRO
O Estado de S.Paulo
O massacre do Realengo deixa-nos, todos, estupefatos. Por que ele aconteceu? A filosofia tem algumas coisas, até conflitantes entre si, a dizer a respeito.
A primeira reação, a mais popular, consiste em achar que foi coisa do Mal - não necessariamente do diabo, mas de algo mau que haja no mundo. No pensamento mais sofisticado essa visão é minoritária, mas existe. Pois é difícil negar a presença de algo mau na vida. Contudo a principal tendência hoje, na filosofia como nos saberes que lidam com a sociedade ou a psique, é considerar que o mau é produzido, é resultado. Vejam o que se conta do assassino: uma pessoa com sérios problemas psíquicos, talvez de origem neurológica, que se agravaram pelas condições em que vivia e por, aparentemente, não ter sido tratada. Seus atos são maus, mas com adequado tratamento talvez ele pudesse ter-se socializado.
O mal não seria algo originário, mas efeito de condições anteriores. Há uma vasta gama de possíveis causas para o crime. Mas não interessa aqui qual explicação se dê. O que importa é que se deem explicações, talvez algumas delas genéticas, mas que terão sido ativadas por razões de convívio (ou sua falta) e por carência de tratamento especializado. Ou seja, o mal é produto de algo que, em si, não é mal. Não haveria "o Mal", menos ainda o demônio. Há problemas de ordem humana e que o homem, isto é, a sociedade, pode resolver.
Essa visão hoje predomina, nas ciências como na imprensa. A mídia procura especialistas que expliquem. Mais que isso, explicando o horrível, espera-se que ele não seja replicado. Como consegui-lo? Uns falam em detectores de metais e em guardas nas escolas, o que é pouco viável. Eu pensaria em mais atendimento social a pessoas em perigo, como era, até o crime, o futuro assassino. Choquei-me ao ver, 12 horas depois da chacina, a escola cheia de policiais, a essa altura desnecessários. O Realengo precisava, então, era de centenas de assistentes sociais, de psicólogos, de gente que pudesse ajudar as famílias e suas crianças a lidar com o trauma, que não afetou somente os parentes dos mortos, mas a comunidade inteira - e o Brasil também, porque nunca imaginamos nossas crianças como alvos de ataque tão perverso.
Essa visão tem, ainda que poucos o saibam, remota origem platônica. Platão entendia que só se faz o mal por se ignorar o Bem. A visão do Bem, o seu conhecimento, é tão forte que torna impossível praticar o mal. Ou seja, voltando a nossos estudiosos da sociedade e da psique, e a nossos proponentes de políticas públicas, todos poderão conviver razoavelmente se as condições que deflagram a agressão forem devidamente tratadas. Mas isso não é fácil. Embora saia mais caro construir cadeias e contratar policiais do que erguer escolas e apelar a especialistas no atendimento humano, a tendência é preferir reagir ao choque a prevenir males. Até porque, quando males ocorrem, são visíveis; quando são prevenidos, nunca se sabe deles. A prevenção do crime por suas causas não é notícia.
Vamos a uma terceira visão filosófica dessa chacina. Agora, o horrível é a impiedade. Como pode alguém massacrar inocentes? Ora, há um grande exemplo histórico nessa direção, que foi o nazismo. Muitos indagaram como a Alemanha, país tão civilizado, fora capaz de matar 6 milhões de judeus, bem como ciganos, em menor número, e eslavos, mais numerosos. Há explicações: a humilhação do Tratado de Versalhes, imposto aos alemães (em 1919, após a 1.ª Guerra Mundial), um antissemitismo presente em várias camadas da população, o autoritarismo prussiano. Mas não bastam. Outras culturas tiveram elementos comparáveis, separados ou reunidos, e nem por isso realizaram holocaustos. Daí que vários estudiosos digam que, em última análise, a análise não consegue explicar o horror. O que se poderia dizer é que pouco resta a dizer, sobre o Holocausto. Os testemunhos são mais poderosos do que as explicações. As causas e razões apontadas ficam muito aquém do sofrimento gerado. Daí que se possa e se deva contar o que aconteceu, mas sem jamais entender como tanto mal pôde ser feito pelo homem - ou tolerado por Deus, se Ele existe. Se o horror é inexplicável, que seja, então, narrado: que, pelo menos, não se torne inenarrável. E sabemos que contar o horror pode aumentá-lo, mas também pode aliviá-lo.
O curioso é que a piedade é um sentimento relativamente recente na vida social. Seu grande defensor é Jean-Jacques Rousseau, que, no século 18, afirmou que o sentimento mais básico no homem é a piedade, a comiseração, a capacidade de sofrer junto ("com+paixão") com qualquer vivente que também sofra. Rousseau talvez pensasse que descrevia o homem como ele é, e nisso pode ter errado. Por milênios, um dos espetáculos mais prestigiados - pelos pobres e pela elite - era ver a lenta agonia dos condenados, em público. Mas depois de Rousseau isso muda. Basta notar que a execução deixa de ser lenta para ser rápida, sai da praça pública para o interior das prisões e, finalmente, é suprimida em quase todos os países do mundo.
No entanto, quase 200 anos depois de Rousseau, a pátria de Goethe e Kant chacinou milhões. Quinze anos atrás, hutus massacraram tutsis. E assassinos chacinam crianças. Falta piedade. O que dizer sobre isso? Temos a explicação pelo Mal, a explicação pelas causas sociais e psíquicas e a impossibilidade de explicar. Pessoalmente, mas sem conseguir descartar a primeira, eu oscilaria entre as duas últimas - apostando em mais políticas públicas, agora focadas talvez em impedir que pessoas que sofrem venham a causar sofrimento inenarrável a outras, e também no respeito de quem sente que, se nesta altura as razões não consolam das perdas, as palavras, pelo menos, podem não ser vãs. Isso se elas ajudarem a recuperar os sobreviventes - do Realengo e, pela televisão interposta, do Brasil inteiro -, que precisam voltar a viver com esperança e sem medo.
PROFESSOR TITULAR DE ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA DA USP
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