domingo, 3 de abril de 2011

Por que a fortuna de José Alencar não o salvou

CRISTIANE SEGATTO 

Uma onda de tristeza tomou o país na última terça-feira. Há muito tempo o povo brasileiro sabia que o ex-vice-presidente José Alencar poderia morrer a qualquer momento. Ainda assim, a partida do guerreiro foi sentida como se fosse um acontecimento inesperado. Sabíamos que ele estava indo, que precisava ir porque já tinha sofrido demais. Mas emudecemos quando a morte, de fato, chegou. 

Não é difícil entender por que Alencar era tão querido. Ele era a personificação do sonho brasileiro. O garoto pobre que trabalhou e venceu. O vendedor bom de conversa que transformou uma lojinha de Caratinga, em Minas Gerais, na maior indústria têxtil de artigos para cama, mesa e banho do mundo. Um batalhador que nunca perdeu a grandeza da humildade. 

A nota dissonante em sua biografia foi a recusa em se submeter ao exame de DNA no processo de reconhecimento de paternidade movido pela professora aposentada Rosemary de Morais, de 55 anos, moradora de Caratinga. Ela foi reconhecida por um juiz mineiro como filha do ex-vice-presidente. A família recorreu. Alencar sempre negou ser o pai, mas se recusou a fazer o teste. Ninguém entendeu. Foi um gesto incompatível com a imagem de honradez que ele construiu. O ser humano e suas incongruências... 

Alencar era, acima de tudo, um doente obediente que lutou pela vida, guiado pela fé inabalável em Deus. Submeteu-se a dezenas de intervenções médicas na tentativa de viver um pouco mais. Sempre que saía do hospital, sorrindo e acenando como se estivesse sempre pronto para a próxima, muitos brasileiros aproveitavam para desabafar: “ele só está vivo até hoje porque é rico e influente. Se tivesse que se tratar no SUS estaria morto há muito tempo”. 

A reclamação é legítima. É a expressão de quem sabe que o artigo da Constituição segundo o qual “saúde é direito de todos e dever do Estado” é, em grande parte dos casos, uma abstração. Milhares de brasileiros morrem de câncer todos os anos porque não podem sequer sonhar com um décimo da atenção e dos cuidados que Alencar recebeu. 

Isso é verdade. Mas é só meia verdade. O caso de Alencar é emblemático porque nos obriga a ver que o câncer é uma doença muito especial. O sucesso do tratamento depende de inúmeros fatores. Muitas vezes, esses fatores têm pouca relação com a condição social e com o volume da conta bancária. Parece bizarro dizer isso, mas vou explicar melhor. 

Os médicos não tratam o câncer baseados numa simples receita de bolo. Existem consensos médicos. São documentos criados para orientar a melhor forma de combater cada tipo de tumor. São listas com procedimentos gerais do tipo: adotar ou não uma cirurgia, que tipo de cirurgia, usar quais drogas em quais circunstâncias, recomendar ou não a radioterapia. 

Esses consensos são orientações gerais. Na avaliação de cada caso, em particular, a coisa é muita mais complicada. Há um momento em que surgem bifurcações no caminho. O médico, a família e o paciente precisam decidir se vão por aqui ou por ali. Toda e qualquer decisão tem graves consequências porque vai determinar o sucesso ou o insucesso do tratamento. 

No momento da decisão, meu amigo, nossa vida está nas mãos do médico. Por mais que ele nos informe sobre as alternativas disponíveis quem decide é ele. José Alencar entregou sua vida nas mãos dos médicos mais estrelados do Brasil e do mundo. Sua fortuna foi capaz de prolongar sua vida ou seu sofrimento (depende do ponto de vista) em quatro anos. Mas não o curou.
O câncer que matou o ex-vice-presidente foi um sarcoma descoberto em 2006. Nas três batalhas anteriores (câncer de rim e de estômago em 1997 e câncer de próstata em 2002), ele venceu a doença. Por isso, não acho correto dizer que ele batalhava havia 13 anos contra o câncer. A luta mesmo, a luta de verdade, começou em 2006. Os tumores anteriores foram vencidos sem dificuldade e não tiveram relação com o drama que ele viveu nos últimos quatros anos. 

O sarcoma (tumor que ocorre em tecidos moles como músculo, gordura, nervos) surgiu no retroperitônio, camada que fica entre o músculo das costas e o intestino. A primeira cirurgia, realizada em julho de 2006, foi marcada por uma divergência entre os cirurgiões Raul Cutait, do Hospital Sírio-Libanês, e Miguel Srougi, professor de Urologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. 

Ambos já haviam operado Alencar anteriormente e têm muita experiência em suas respectivas áreas. Raul, em cirurgia do aparelho digestivo. Miguel, em urologia. “Sarcoma não é especialidade de nenhum dos dois, por isso optei que ambos ficassem encarregados da cirurgia”, me disse Alencar numa entrevista realizada no hospital em junho de 2008. Na ocasião, Raul e Miguel discordaram sobre o caminho a seguir. 

O motivo da discórdia foi o tipo de incisão cirúrgica que seria feita. Miguel decidiu não participar da operação. Ele estava no Sírio-Libanês operando outro paciente durante a cirurgia de Alencar. Quando fiz uma reportagem sobre o caso, em 2008, Cutait me disse que, a pedido do vice-presidente, chamou Miguel. “Chamei o doutor Miguel para dar algum palpite. Ele não fez nenhuma observação negativa a respeito do que havia sido feito.” 

Miguel nunca aceitou falar sobre o caso. Em novembro de 2006, ele publicou uma carta no jornal Folha de S. Paulorelatando o seguinte: “Durante o ato cirúrgico, realizado por outro profissional, fui convocado às pressas para resolver um impasse inesperado e nele permaneci por cinco minutos”. Miguel nunca explicou bem qual foi o impasse. Apenas afirmou “ter julgado que o tratamento proposto era incorreto.” 

Alguns dias depois, a análise do tumor extraído de Alencar revelou que não fora possível retirá-lo completamente e ainda havia células malignas às margens dele. Quando entrevistei Cutait em 2008, ele me disse que não havia restado um pedaço de tumor no corpo de Alencar, mas sim pontos microscópicos. “Nesse tipo de tumor nunca conseguimos fazer a ressecção sem deixar nenhum pontinho microscópico no lugar”, afirmou Cutait. 

Poucos meses depois da cirurgia feita por Cutait, o câncer voltou. Em outubro de 2006, Alencar foi operado em Nova York pelo médico Murray Brennan, do Memorial Sloan-Kettering Cancer Center. Brennan é considerado o maior especialista do mundo em cirurgias de sarcoma. Onze meses depois, o câncer reapareceu. Depois disso, Alencar enfrentou sucessivas cirurgias, dezenas de internações e participou de testes de drogas experimentais. Lutou durante quatro anos, com todas as suas armas e todo o seu dinheiro. O sarcoma o levou. 

Numa das vezes em que entrevistei o vice-presidente, perguntei se ele soube da divergência entre os médicos durante a cirurgia de retirada do primeiro sarcoma, em julho de 2006. Ele respondeu: “Pode ser que tenha havido alguma coisa, mas eu estava anestesiado. Se você passar por uma anestesia geral, vai me dar razão. Não fica sabendo de nada. Eles evitaram falar disso comigo, porque eu era o paciente”. 

Perguntei, então, se ele aprovava o procedimento que havia sido adotado naquela cirurgia. Ele disse: “Sim. Eu não podia de forma alguma fazer qualquer tipo de avaliação. Quem sou eu? Sou leigo. Como um médico propositadamente vai deixar um pedaço do tumor? Não acredito. Sinceramente, prefiro não acreditar que tenha havido isso”.

ANDRÉ INFANTIO maestro enfrenta há 24 anos um câncer semelhante ao que matou José Alencar
Nesta semana, em que pensei tanto em Alencar, tive o prazer de conversar com outro lutador. É o maestro André Infanti, um paulistano de 73 anos que mora em Santos. Nos anos 60, ele tinha um conservatório de música no Ipiranga. Deu aula para muitos músicos que se tornaram profissionais. Entre eles, o cantor Roberto Carlos, no tempo do RC Trio. Como Alencar, Infanti teve um sarcoma do retroperitônio. Em que ano? 1988. 

Com todos os recursos que sua fortuna lhe proporcionou, Alencar viveu quatro anos desde a descoberta do sarcoma. Infanti viveu 24 anos. Sempre se tratou pelo SUS. Quando começou a sentir dores abdominais, os médicos que o atenderam em Santos acharam que ele tivesse gastrite. Quando Infanti foi finalmente levado para a sala de cirurgia, os médicos viram o sarcoma e decidiram não extraí-lo. Suturaram o abdome e decretaram que Infanti teria apenas um mês de vida. 

Infanti foi parar no Hospital A.C. Camargo, em São Paulo. Foi operado pelo cirurgião Fernando Gentil, que morreu pouco tempo depois. O sarcoma voltou inúmeras vezes e, desde então, Infanti foi operado pelo cirurgião Ademar Lopes, que era assistente de Gentil. 

Lopes decidiu tratar Infanti apenas com cirurgia. Até hoje, foram 27. Nada de quimioterapia ou qualquer outro recurso. “O sarcoma parece uma trepadeira. Vai tomando conta de tudo”, diz Infanti. “Na primeira cirurgia, foi possível retirar o tumor inteiro”, diz Ademar Lopes. “Mesmo quando o tumor é retirado completamente, ele volta em cerca de 60% dos casos. Quando o câncer está alojado muito perto da coluna, o cirurgião não pode extrair mais tecido para deixar uma boa margem de segurança. Por isso, o tumor volta.” 

Infanti acompanhou a dor de Alencar de um ponto de vista peculiar. “Temos a mesma doença, via o sofrimento dele e pensava que sou um privilegiado. Digo para todo mundo que sempre fui muito bem atendido. O SUS existe”, diz. 

Em uma de suas internações, Infanti estava triste, sem vontade de sair da cama. A equipe queria que ele se levantasse. Alguém teve a ideia de chamar até o quarto os músicos que, por acaso, haviam feito uma apresentação no hospital. Os músicos fizeram fila indiana no corredor e chamaram Infanti na porta do quarto. “Era uma orquestra linda que me chamava para regê-la”, diz.“Regi a abertura de Aida, de Giuseppe Verdi. Aquilo me levantou.” 

Com essa coluna estou querendo dizer que ser rico é ruim? Que bom mesmo é se tratar pelo SUS? Não. Estou apenas chamando a atenção para o fato de que coisas que repetimos como se fossem verdades absolutas podem ser mais complexas do que parecem. O sucesso do tratamento do câncer envolve múltiplas questões (características genéticas de cada paciente, capacidade individual de suportar determinadas medidas agressivas, acesso a drogas importantes, planejamento da cirurgia e da radioterapia etc). O sucesso depende, sempre, de difíceis decisões. Boas e más decisões são tomadas o tempo todo em qualquer lugar.


Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 15 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo. Para falar com ela, o e-mail de contato écristianes@edglobo.com.br

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