JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO
O Estado de S. Paulo
Imagine viver em um país onde a polícia recebe vários telefonemas de um matador querendo se entregar e mesmo assim demora uma hora para chegar ao local da chacina porque o piloto do helicóptero está em férias. Ou em um reino onde o principal líder assiste, pela TV, sua capital pegar fogo durante três dias antes de interromper as férias e voltar a trabalhar. Melhor ainda, num lugar onde oposição e governo cogitam transformar o país em caloteiro apenas para extrair ganhos políticos de uma votação no Congresso.
Quem acompanhou as manchetes das últimas semanas sabe que esses exemplos vêm da Noruega, Inglaterra e Estados Unidos - respectivamente o líder mundial em desenvolvimento humano, o que sobrou do maior império da terra, e o país mais poderoso do planeta. Casos se multiplicam. Não dá para esquecer a imprevidência e inépcia das autoridades japonesas na crise nuclear de Fukushima.
Na relação dívida pública/PIB, países do Primeiro Mundo têm as maiores proporções de endividamento em relação ao que produzem suas economias - o dobro do que o Brasil. Gastam muito mais do que poderiam, não fosse a boa vontade do resto do mundo em emprestar-lhes dinheiro. Um comportamento tão esbanjador e repetitivo que ameaça jogar a economia global na sua segunda recessão em menos de quatro anos.
Seriam sinais de decadência? Ou apenas um incentivo a tomar empréstimos sem meios para pagá-los? Afinal, rico não parece ser quem ganha, mas quem deve.
Sejam quais forem as respostas, não escapam à constatação de que Noruega, Inglaterra e EUA conquistaram melhores condições de vida para a maioria de sua população apesar de também terem governantes e autoridades capazes de incompetência tão grande que nos evocam repúblicas bananeiras. E com tal frequência que a expressão "primeiro-mundice" pode se tornar um primo rico de "terceiro-mundismo".
Voz. Isso só reforça o óbvio: o Terceiro Mundo não tem o monopólio da incúria. Não há nada intrinsecamente errado com os povos ao sul do equador. É fato que por aqui se fuzilam juízes na rua e a chantagem é um instrumento político cotidiano. Mas nada impede sul-americanos, africanos e asiáticos de acelerarem seus avanços em matéria de renda, escolaridade e esperança de vida, a despeito de quem os governa.
Basta ver um dos infográficos animados de Hans Rosling na internet para perceber o quanto diminuiu nos últimos 50 anos a distância que separava os "desenvolvidos" dos "em desenvolvimento", seja em fertilidade e mortalidade infantil, seja em renda per capita. Na sua grande maioria, os países na rabeira avançaram mais rapidamente do que os da ponta.
O mundo, como o Brasil, está rapidamente transformando miseráveis em pobres, e pobres em classe média mais ou menos remediada. Sob novo status, essas pessoas têm novas demandas, mais autoconfiança e, finalmente, voz. São neoconsumidoras, e portanto, alvo de interesse do mercado. Onde impera a lógica do "consumo, logo existo", ser um consumidor é passaporte para a respeitabilidade.
Eixo. A economia parece ser vanguarda nos processos de mudança. Os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) viraram sigla e tiveram reconhecimento internacional primeiro do mercado financeiro. Depois vieram as lojas de marca e as turnês de artistas globais. Mas os ditos "emergentes" ainda brigam por espaço em fóruns e instituições políticas multilaterais.
Alguma coisa está mudando, não necessariamente para melhor ou pior. Apenas mudando. O Rio de Janeiro ganha a primeira página do The New York Times não como a capital do samba, futebol e violênica, mas como a cidade das Américas com mais alto preço para escritórios, onde um Martini custa US$ 35.
Uma das causas dessa inflação em dólar (fora a valorização do real), explica a reportagem do mais influente jornal do mundo, é a imigração de profissionais estrangeiros, principalmente norte-americanos, em busca de empregos mais bem pagos em bancos de investimento. Faz sentido: salários mais altos onde a economia está quente e onde há investimentos.
O eixo do poder econômico global está pendendo para o sul e para o oriente. Pode ser um fenômeno demográfico (populações mais jovens e força de trabalho mais ativa), mercadológico (novas hordas de consumidores), ou a combinação de ambos. As diferenças regionais ainda são grandes, mas menores do que as oportunidades para os emergentes.
O Brasil pode não ter chegado ao Primeiro Mundo, mas o Primeiro Mundo chegou ao Brasil.
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