quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Protecionismo e patriotismo



MARCELO DE PAIVA ABREU
O Estado de S. Paulo


Há algo intrinsecamente errado com o processo de tomada de decisões que está prevalecendo na área econômica do governo. No caso da política econômica externa e, em particular, da política comercial, o primitivismo é estarrecedor.

O recente aumento de 30% da alíquota do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) incidente sobre automóveis é bom exemplo de decisão estapafúrdia. Ao limitar o aumento a veículos importados - que não podem cumprir os requisitos relacionados a componentes nacionais e etapas da produção realizadas no Brasil -, a legislação estabelece tratamento fiscal discriminatório independentemente da tarifa de importação.

Do ponto de vista da Organização Mundial do Comércio (OMC), a nova legislação é ilegal, pois implica violação de pelo menos duas regras: a que define tratamento nacional - isto é, a não discriminação da tributação interna entre importações e produtos produzidos domesticamente - e a que proíbe subsídios que dependam de conteúdo nacional. A razão para a regra sobre tratamento nacional é óbvia. Na OMC, os países registram listas de tarifas máximas de importação que resultam de negociações envolvendo concessões recíprocas. Que sentido teria isso, se fosse legal fazer incidir tributação interna de forma discriminatória apenas sobre importações?

Além dos aspectos legais, devem ser considerados os aspectos econômicos. O governo mencionou preocupação com o aumento de estoques nas montadoras e as concessões de férias coletivas a seus operários. Mas os dados da Anfavea registram crescimento da produção de janeiro a agosto de 4,4%, em relação a 2010. Isso depois de crescer 9,3% ao ano entre 2002 e 2010. É difícil caracterizar uma indústria em crise. Por que o tratamento especial dispensado à indústria automotiva? O favorecimento decorre do peso dos "interesses especiais", da capacidade que tem o setor de extrair benesses do Estado, com base em orquestração entre montadoras, produtores de autopeças e sindicatos. A conta onerará os consumidores, que pagarão mais caro pelos seus carros, importados ou não. Só na microeconomia da Anfavea essa política não terá impacto sobre os preços de carros produzidos no País. Enquanto isso, em meio a risotas de jornalistas presentes, o ministro Guido Mantega assegurava, em Washington, que a medida não é protecionista... Trata-se de espetacular episódio de captura do governo por "interesses especiais".

O estímulo à inovação tecnológica é objetivo desejável de política econômica. Há formas legais e efetivas de estimular o desenvolvimento tecnológico por meio de subsídios permitidos pela OMC. Para isso, seria necessário que o BNDES avaliasse a inovação tecnológica como condição para distribuir crédito subsidiado, abandonando critérios injustificáveis como a escolha de campeões nacionais. Tal como estão as coisas, cabem sérias dúvidas quanto aos mecanismos de controle que o governo usará para aferir inovação e distribuir benesses fiscais.

Alguns analistas manifestaram preocupação com o impacto da decisão insensata do IPI sobre a credibilidade do Brasil, exatamente no momento em que foi apresentada à OMC proposta sobre possíveis medidas de defesa comercial para contrabalançar as consequências de políticas que sustentam artificialmente taxas cambiais desvalorizadas. A preocupação, embora louvável, não procede pela simples razão de que a proposta brasileira à OMC tem escassa credibilidade. O que se propõe é que, no caso de desvios de taxas de câmbio além de limites negociados previamente, seja possível a imposição de direitos compensatórios.

A proposta faz lembrar a anedota dos náufragos que enfrentam o problema de abrir latas de comida sem ter instrumentos adequados, e ouvem do economista um tratamento teórico do problema com base na suposição de que se dispõe de um abridor de latas. O problema crucial que se enfrenta hoje quanto à coordenação de políticas macroeconômicas é exatamente o balizamento das taxas cambiais dos principais protagonistas, em particular China e EUA. É ilusório pensar que gestões na OMC possam resultar em progresso em relação ao assunto. O Financial Times, em editorial de 23/9, Brazilian feint ( Finta brasileira), qualificou a iniciativa brasileira como embromação sem nenhuma possibilidade de prosperar e sugeriu que o País recue e pense melhor sobre o assunto. É um bom conselho, mas que o governo terá dificuldade em seguir, dadas as limitações já demonstradas de sua capacidade decisória, em particular na área econômica.

A mistura de protecionismo e iniciativas de efeito que desgastam a reputação do Brasil como interlocutor com credibilidade nos foros internacionais é muito preocupante. Só é julgada aceitável por quem defende que ser "contra o protecionismo brasileiro é o discurso das nações industrializadas e dominantes". É hora de invocar a gasta citação de Samuel Johnson e lembrar que o patriotismo pode ser o último refúgio dos pilantras. Em vez de se enrolar na Bandeira Nacional tentando respaldar decisões estapafúrdias, é essencial analisar quem se beneficia e quem arca com os custos das políticas protecionistas agora adotadas. O resto é lobby, jogo de cena ou simples miolo mole.
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