Recentemente, a revista britânica "The Economist" promoveu um debate questionando a existência de um modelo de desenvolvimento chinês. Da mesma forma que as políticas identificadas com o "Consenso de Washington" dominaram o debate econômico nos anos noventa, estaria surgindo agora uma espécie de "Consenso de Beijing", representado pelo maior controle da taxa de câmbio, dirigismo estatal, investimentos em infraestrutura feitos diretamente pelo Estado, oferta abundante de crédito por bancos públicos e incentivos à exportação. Será que existe tal modelo?
Os convidados ao debate, por motivos diferentes e reconhecendo a importância cada vez maior da China no cenário global, chegaram à conclusão de que não existe um modelo chinês porque esse "modelo" baseia-se em uma autocracia que coloca metas de crescimento como principal objetivo e posterga a adoção de políticas distributivas. Isso seria equivalente ao que o Brasil fez de 1968 a 1973, época conhecida como o período do milagre econômico.
Um dos convidados ao debate, o economista Michael Pettis, professor na Universidade de Pequim, lembrou que: "O coração do modelo (chinês) é baseado em subsídios para a indústria e investimentos pagos pelas famílias. Em alguns casos, como o do Brasil nas décadas de 60 e 70, o custo para as famílias era explícito - o Brasil tributava fortemente as famílias e investia na indústria e na infraestrutura. O modelo asiático faz uso de mecanismos menos explícitos para atingir a mesma finalidade".
O economista está parcialmente correto já que, ao longo da década de 70, essa transparência foi diminuindo. Mas ele tem certa razão, pois a reforma financeira na segunda metade dos anos 60 aumentou abruptamente a poupança pública no Brasil via expansão de impostos e criação dos mecanismos de poupança forçada como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). De 1964 a 1970, estima-se que a carga tributária no Brasil tenha passado de 16% para 25% do PIB, um crescimento de quase dez pontos percentuais do PIB em pouco mais de seis anos. É claro que, sem a necessidade de aumentar os gastos sociais em uma ditadura, todo esse aumento de arrecadação foi para financiar programas setoriais e aumento do investimento público. Pelo menos por um determinado período, a sociedade brasileira sabia que políticas setoriais tinham um custo.
Dado que voltamos a fazer políticas setoriais e o Estado passou novamente a financiar grandes projetos de infraestrutura via BNDES, escolhas legítimas de um governo democrático, cabe a seguinte pergunta: o custo dessas políticas está sendo explicitado para a sociedade ou ele se baseia em mecanismos de financiamento menos transparentes tal como faz a China? Infelizmente, acredito que estamos caminhando mais para o segundo caso. Alguns poucos exemplos são suficientes para corroborar essa tese.
Primeiro, tem-se o já tão discutido e repetido "jogo da dívida líquida do setor público (DLSP)". O governo aumenta seu endividamento (dívida bruta) e, em seguida, aumenta os empréstimos para os bancos públicos. Assim, tem-se a criação de um crédito e um débito que se compensam, mas como são corrigidos a taxas diferentes, o custo do débito (Selic) muito maior que a remuneração do crédito (TJLP), ao longo do tempo a DLSP aumenta. Quando todos esperavam que, finalmente, o Ministério da Fazenda fosse divulgar esse custo em entrevista coletiva no mês de agosto, divulgou-se os supostos benefícios sem nenhuma estimativa dos custos. Dado que os técnicos do Tesouro Nacional são bem preparados e diariamente fazem projeções complicadíssimas, parece que se fez opção por "esconder" o custo dessas operações.
Segundo, o Tesouro Nacional vem fazendo uso de uma prática perigosa para gerar receita: venda de créditos futuros para o BNDES. Esse banco, que pegou mais de R$ 200 bilhões emprestados do Tesouro Nacional nos últimos dois anos e já passou por mais de duas capitalizações recentes, utiliza parte do dinheiro que recebe do Tesouro para comprar crédito que o próprio Tesouro tem junto às estatais (Eletrobrás): R$ 3,5 bilhões em 2009 e mais R$ 1,4 bilhão em setembro deste ano. Na prática é como se o Tesouro empresta-se a si próprio e "esquentasse" o dinheiro no BNDES para não afetar a DLSP.
Terceiro, o mecanismo de capitalização da Petrobras junto com a Medida Provisória (MP) Nº 500 de 30/08/2010 abriu outro precedente perigoso. A sociedade por meio de seus representantes no Congresso Nacional decidiu autorizar a cessão de até 5 bilhões de barris de petróleo da camada do pré-sal (equivalente a R$ 74,8 bilhões) para capitalização da Petrobras. Após a capitalização, o governo ficou com uma participação muito maior do que a necessária para manter o controle acionário da petroleira e, assim, poderá utilizar esse excesso de participação para capitalizar outras estatais fazendo uso da MP 500/2010.
Adicionalmente, o novo empréstimo do Tesouro Nacional para BNDES por meio da MP 505 de 27/09/2010 para que o banco compre ações da Petrobras significa, na prática, que já estamos utilizando parte da riqueza do pré-sal (barris de petróleo vendidos à Petrobras e pagos com o empréstimo ao BNDES) para fortalecer o caixa do Tesouro em mais de R$ 25 bilhões; uma operação que não têm absolutamente nada a ver com gastos em educação e saúde que tanto se debateu no Congresso Nacional quanto ao uso dos recursos do pré-sal.
É legítima a opção de um governo democraticamente eleito fortalecer estatais ou mesmo de utilizar parte da riqueza futura do pré-sal para financiar novos gastos. Mas essas opções precisam ser claramente debatidas e explicitadas para a sociedade. A julgar pelos pontos levantados neste artigo, há uma incerteza e desconfiança crescente que, apesar de sermos uma democracia totalmente diferente de uma ditadura como é a China, compartilhamos a visão que transparência no financiamento de políticas setoriais e do investimento é algo secundário. Será mesmo que existe um modelo chinês?
Mansueto Almeida é técnico de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). http://mansueto.wordpress.com
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