segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O herói e o antagonista


Ruy Fabiano
blog Noblat 


A política, como a literatura, serve-se de fórmulas e esquemas para revestir de encanto e carisma seus personagens. Tão importante quanto o herói, ensina Joseph Campbell, é o antagonista, o anti-herói. Não há como conceber um sem o outro, e o herói será tão mais fascinante quanto mais cruel for o antagonista. 

O antagonista fabricado pelo PT para gerar o herói Lula chama-se Fernando Henrique Cardoso. Lula é o operário que, galgando as adversidades impostas por uma sociedade injusta e preconceituosa, triunfou. Já FHC, nascido em berço esplêndido, não só desdenharia dessas dificuldades, mas se empenharia em agravá-las. 

Nasce desse esquema reducionista a idéia do “eles” (as elites) e “nós” (o povão), emblema dos discursos de Lula. Aplicado à história do Brasil, dá curso à versão do “nunca antes neste país”, que precede o anúncio de todas as realizações do governo Lula. 

O Brasil popular e justo, dentro desse esquematismo, foi fundado em 2002; antes, pertencia às elites, que só o exploraram. Como o vilão perde força ao ser projetado abstratamente numa classe social, é preciso dar-lhe rosto, voz, perfil. FHC encaixou-se no molde, independentemente de sua biografia o desmentir. 

Em política, ensinava a velha raposa José Maria Alckimin (não confundi-lo com Geraldo Alckmin, que nem seu parente é), vale a versão, não o fato. A própria frase, cuja autoria é de Gustavo Capanema, acabou atribuída a Alckimin, que com ela entrou para a história, atestando a veracidade de seu enunciado. 

Nada disso, porém, resiste a um exame, ainda que superficial. As biografias de FHC e de Lula como homens públicos os colocam lado a lado até o momento em que o primeiro chega ao poder. Fernando Henrique apoiou os movimentos operários do ABC nos anos 80, que deram visibilidade a Lula. 

E Lula foi um dos cabos eleitorais de FHC nas eleições para a prefeitura de São Paulo em 1985. Estiveram juntos nas campanhas pela anistia e pelas diretas já. As divergências começaram exatamente na redemocratização, quando o PT adotou a estratégia de isolamento partidário, para “não se contaminar” com os políticos tradicionais, sustentando que não havia diferença entre Tancredo Neves e Maluf, farinhas do mesmo saco, expressões das “elites”. 

Era já a construção do mito, embora o maniqueísmo não fosse ainda tão nítido, o que ocorreria exatamente nos governos de FHC. Mas, em 1º de janeiro de 2003, ao receber a faixa presidencial de Fernando Henrique – e isso está devidamente registrado nos inúmeros vídeos feitos na época -, Lula disse emocionado, abraçando seu antecessor: “Fernando, aqui você terá sempre um amigo”. 

Durou pouco a emoção. Já no dia seguinte, José Dirceu, todo-poderoso chefe da Casa Civil, fazia menção à “herança maldita” do antecessor. A expressão foi (e ainda é) repetida à exaustão, mesmo sem qualquer fundamentação, quando dificuldades precisam ser explicadas. Os fatos mostram, no entanto, que a herança é benigna, pois garantiu a estabilidade econômica e o êxito da plataforma desenvolvimentista que o governo Lula pôde pôr em cena. 

O Fome Zero capitulou à fórmula anterior da Rede de Proteção Social, implementada por Ruth Cardoso – e criticada fortemente por Lula (há vídeos também, disponíveis no Youtube, que o atestam). O Bolsa Família descende dos programas sociais do governo FHC (Bolsa Educação, Vale Gás, Vale Transporte, Vale Alimentação). 

Lula reuniu-os sob rótulo único e, graças a uma logística eficaz pré-estabelecida, pôde expandi-los, como certamente continuará a fazê-lo o seu sucessor, seja lá quem for. São conquistas cumulativas – e consolidadas. 

Os números triunfais de hoje na economia e a resistência do sistema bancário brasileiro ao terremoto financeiro de 2008 decorrem de medidas adotadas para consolidar o Plano Real (ao qual o PT se opôs), como a Lei de Responsabilidade Fiscal (que em maio completa 10 anos) e o Proer (Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Sistema Financeiro Nacional), igualmente combatidos por Lula e PT. 

Lula mostra imenso talento na sustentação do mito. Talento raro, que o projeta como um dos mais populares governantes da história. Critica as privatizações, mas capitaliza os seus resultados econômicos e sociais, como se não houvesse conexão entre ambos. Condena o “neoliberalismo”, mas o mantém a pleno vapor, sob o comando de um ex-tucano, o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, que Lula queria como vice de Dilma. 

O desafio presente, mais complexo, é encaixar José Serra no figurino de anti-herói. Também ele é um emergente, de origem modesta. Também ele foi um perseguido político. Nada disso, porém, o impediu de tornar-se um economista renomado, experimentado no exercício de numerosos cargos técnicos e eletivos. 

Daí a opção por uma campanha eleitoral plebiscitária, que mantenha em cena o vilão FHC em contraponto ao herói Lula. É uma fórmula que já deu frutos e Lula está certo de que continuará a dá-los. O problema é que o herói (Lula) não se parece nem um pouco com Dilma, nem o vilão (FHC) com Serra. 

Ruy Fabiano é jornalista
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