terça-feira, 19 de outubro de 2010

O economista Raghuram Rajan alerta sobre um conflito cambial

O economista Raghuram Rajan alerta sobre um conflito cambial

Alexander Jung, Thomas Schulz, Der Spiegel

Em uma entrevista para a “Spiegel”, o renomado economista de Chicago, Raghuram Rajan, discute os riscos de uma guerra cambial global, os riscos das taxas de juros persistentemente baixas e da crescente desigualdade de renda e riqueza nos Estados Unidos.

Spiegel: Professor Rajan, as tensões entre os Estados Unidos e a China estão aumentando, vários países estão tentando enfraquecer suas moedas. Este é o início de uma guerra cambial global?

Rajan: É certamente um conflito, com os países utilizando ferramentas diferentes para levar vantagem. As economias industrializadas estão usando uma política monetária ultrafrouxa, enquanto os mercados emergentes estão usando intervenção na moeda e controles de capital.

Spiegel: Onde estão os riscos?

Rajan: As ferramentas que eles estão usando criam distorções – tanto a política monetária ultrafrouxa quanto a intervenção correm o risco de criar excesso de liquidez e bolhas de preços de ativos. Se o capital é barato demais, nós tenderemos a usá-lo em excesso. Se a taxa de câmbio for baixa demais, nós nos concentraremos em produzir para exportação. E quando os ânimos se acirram, o resultado pode ser um protecionismo feio.

Spiegel: A China mantém sua moeda artificialmente desvalorizada frente ao dólar há anos. Os chineses estão utilizando métodos injustos?

Rajan: Isso ocorre em detrimento do desenvolvimento da China. A desvalorização da moeda é uma forma de subsídio às empresas exportadoras. Mas elas estão além do estágio em que precisam de proteção, porque já podem andar com suas próprias pernas. Assim, a manutenção da moeda desvalorizada cria distorções na economia, o que não é nem eficiente e nem justo.

Spiegel: Em outras palavras, a China deveria aumentar o valor do yuan?

Rajan: Ela deveria, mas uma China cada vez mais assertiva provavelmente não terá pressa de fazê-lo. Um Congresso americano cada vez mais impaciente, buscando transferir a culpa pelo baixo crescimento americano, poderá agir. A China poderá adotar medidas cosméticas para evitar uma ação. Mas a situação pode sofrer uma escalada. Seria bem melhor se os mercados emergentes asiáticos pressionassem a China e também acompanhassem essa pressão aumentando o valor de suas moedas, de forma coordenada.

Spiegel: Como esses conflitos cambiais poderiam ser evitados?

Rajan: Eu acho que isso envolve muito mais do que apenas moedas. É muito conveniente para os países industrializados apontar a intervenção cambial como sendo o problema, porque não são diretamente culpados disso. Causa surpresa o fato de a China resistir a um acordo internacional voltado apenas para as taxas cambiais? Mas os países industrializados também podem ser repreendidos pelas políticas que adotaram nos últimos anos. Vamos nos recordar de onde esta crise se originou...

Spiegel: ...nos Estados Unidos, quando a bolha imobiliária estourou e a crise financeira foi deflagrada. Então o senhor acha que o equivalente da política chinesa de moeda desvalorizada é a política americana de dinheiro barato.

Rajan: De certa forma, este é um jogo de soma zero, porque todo mundo está tentando chegar às mesmas fontes de demanda. Nós precisamos de um melhor diálogo global sobre toda uma variedade de políticas, com nada ficando de fora da mesa. Mas não há apetite para isso.

Spiegel: Se a China permitir a valorização do yuan, como o senhor sugere, o que os americanos teriam que fazer? Como os Estados Unidos deveriam mudar sua política monetária?

Rajan: Ainda existem rachaduras ocultas que ameaçam a economia global. Os Estados Unidos disfarçam isso com um grau extremo de estímulo, que cria condições de consumo e investimento excessivos. Nós estamos pisando fundo demais no acelerador aqui. Veja as taxas de juros: elas permanecem baixas demais, o que é bastante incomum. Nós estamos testemunhando uma recuperação, mas é uma recuperação falsa, instável.

Spiegel: Os bancos centrais realmente têm escolha? Se aumentarem as taxas de juros, então a economia provavelmente reentrará em recessão. Isso já aconteceu antes nos Estados Unidos, após a Grande Depressão, em 1937.

Rajan: Os economistas ainda debatem se o Federal Reserve (Fed, o banco central americano) foi responsável pela recessão em 1937 ou se ela foi causada pelo aumento dos salários, sindicalização e regulamentação. Eu não proponho nenhum aumento da noite para o dia nas taxas de juros, e certamente não para um número alto, como 5%. Isso seria irresponsabilidade. Eu apenas acho que taxas de juros baixas por tempo prolongado são perigosas. Elas encorajam as pessoas a se endividarem e a investirem em ativos de risco. Nós estamos passando de uma crise para outra.

Spiegel: Não é cedo demais para pensarmos em aumento das taxas de juros? Os problemas estão longe de terem sido solucionados. Na Grécia ou Irlanda, por exemplo, a situação ainda é frágil e motivo de preocupação.

Rajan: É verdade. Mas à medida que as preocupações diminuírem, nós não devemos esperar demais para dar início ao processo de aumento dos juros. No momento, não há nem mesmo um debate sobre se esta é uma ideia apropriada. As pessoas estão concentradas demais nos benefícios das taxas de juros baixas, sem considerarem os custos. A economia está passando de uma bolha para outra. Nós já cometemos esse erro antes, depois de 2002. Há o perigo de que repetiremos este erro.

‘Há pouco apetite para redistribuição de renda nos EUA’

Spiegel: Isso soa como se o dinheiro fácil dos bancos centrais fosse responsável por toda a crise financeira. Mas e quanto aos banqueiros gananciosos, os políticos negligentes e proprietários de imóveis imprudentes?

Rajan: Você está certo, mas não há muito sentido em apontar dedos. Este foi o colapso de um sistema que consistia de muitos componentes. Essas forças são mais fortes do que a influência de pessoas individuais, e as forças ainda estão presentes. Seria melhor lidarmos com os problemas fundamentais.

Spiegel: O senhor poderia ser mais específico?

Rajan: Desde os anos 80, a mudança tecnológica criou a necessidade de capacitação e educação muito maior na força de trabalho americana. A demanda por pessoas com ensino superior cresceu muito mais rápido do que a oferta. Como resultado desse descompasso, segmentos significativos da população começaram a ficar para trás. A desigualdade de renda e riqueza aumentou.

Spiegel: Mas isso não tem nada a ver com a crise financeira.

Rajan: Os políticos deram às pessoas mais pobres acesso a empréstimos para compra de imóveis, como uma forma de fazê-las se esquecerem da estagnação de sua renda. Eles apoiaram a aquisição de imóveis com a ajuda da Fannie Mae e Freddie Mac. Isso era uma opção muito mais fácil e rápida para aquisição do que fornecer educação às pessoas e lhes proporcionar oportunidades para avanço. As pessoas tiveram acesso fácil ao crédito, os preços dos imóveis começaram a subir, isso criou um senso de riqueza, elas tomaram mais dinheiro emprestado e o utilizaram para o consumo. Assim, elas deram menos atenção ao fato de que sua renda não tinha aumentado.

Spiegel: Os políticos também poderiam ter combatido a pobreza aumentando os impostos sobre as pessoas que ganham mais.

Rajan: Há muito pouco apetite nos Estados Unidos para o tipo de redistribuição de renda que é praticada em muitas partes da Europa. Além disso, o boom do crédito imobiliário parecia ser uma solução para muitas coisas. Por exemplo, ele também criou emprego para pessoas com baixa qualificação.

Spiegel: Com sucesso moderado. A taxa de desemprego chegou a 9,6% e 14 milhões de americanos estão desempregados.

Rajan: Precisamente. O estímulo era insustentável. E estamos fazendo isso de novo. Ao menos o desemprego não está aqui em 20%, como na Espanha. Se estivesse, ocorreria uma revolução nos Estados Unidos, porque a rede de segurança social é mais fraca. Este é o motivo para o Fed estar sob tamanha pressão para manter as taxas de juros baixas. Além disso, o resto do mundo se acostumou às taxas de juros baixas. Os americanos pegam seu dinheiro barato e compram importados do Japão, China ou Alemanha. Isso cria um desequilíbrio no comércio global que representa outra rachadura profunda na economia mundial.

Spiegel: Onde o senhor vê os riscos?

Rajan: Os Estados Unidos estão gastando mais do que ganham – eles consomem demais. As economias chinesa, alemã e japonesa, por sua vez, são voltadas demais para a exportação. Tudo isso é insustentável.

Spiegel: A Alemanha deveria desistir de seu modelo de negócios voltado para a exportação?

Rajan: Não. A Alemanha se tornou altamente competitiva ao longo da última década, o que é bom. E não deve se tornar mais esbanjadora. Para mim, parece mais razoável que a Alemanha se livre de algumas restrições.

Spiegel: Por exemplo?

Rajan: A Alemanha deveria liberalizar certos setores de serviços – nas pequenas empresas, por exemplo, para aumentar a competitividade e reduzir as regulamentações de entrada. No geral, a Alemanha vai bem. O desemprego está caindo, levando a salários mais altos e maior demanda doméstica. Certo reequilíbrio econômico virá disso.

Spiegel: De qualquer forma, a Alemanha não é mais a líder mundial em exportações. Esse título agora pertence à China. A República Popular precisa se livrar de sua dependência das exportações?

Rajan: O problema com a China é que os lares ganham um percentual pequeno demais da renda nacional, portanto seus gastos representam muito pouco. Muita renda vai para as corporações. Elas se beneficiam dos impostos baixos, dos preços baratos de energia e os preços baratos das terras. Isso precisa mudar, mas os chineses estão cientes do problema.

‘Havia um excesso de confiança’

Spiegel: A China e a Índia estão avançando para se tornarem os motores da economia mundial, enquanto as economias do velho mundo industrializado enfraqueceram. Qual é o futuro de economias como as dos Estados Unidos, França ou Alemanha?

Rajan: Os países industrializados tradicionais precisam estar preparados para o fato de que perderão suas vantagens naturais. Permita-me dar um exemplo: quando você trabalha para uma empresa de moda em Milão, basta você olhar pela janela para ter inspiração. Mas os novos clientes vivem longe dali – em Xangai, por exemplo. É o local onde a demanda se encontra e onde as coleções em breve serão criadas. As coisas não serão tão fáceis para Milão como costumavam ser.

Spiegel: Então o senhor está dizendo que as empresa ocidentais não apenas transferirão parte de sua produção para o exterior, mas também os serviços?

Rajan: A pergunta central é esta: como as empresas industriais podem atender uma demanda que está se desenvolvendo a milhares de quilômetros de distância? Este é o grande desafio para os próximos anos. Eu suspeito que em um ambiente como esse, os impulsos protecionistas serão mais fortes.

Spiegel: O senhor já fez uma previsão muito boa antes, no encontro dos banqueiros centrais em Jackson Hole, há cinco anos. Eles celebravam o mandato de Alan Greenspan como presidente do Fed. Então o senhor subiu ao palco e alertou para o risco de uma crise financeira catastrófica iminente. Como a plateia reagiu?

Rajan: A estrela de Alan Greenspan estava no alto àquela altura. A dúvida era se ele tinha sido o melhor presidente do Federal Reserve na história, ou estava apenas entre os melhores. Qualquer um que falasse sobre problemas potenciais naquele momento era um estraga-prazeres. Nos círculos de políticas, um desacordo público geralmente é velado, mas o fato de terem discordado de forma tão veemente sugeriu que eu tinha tocado em um nervo.

Spiegel: O que disseram?

Rajan: Que eu estava exagerando. Que eu queria que regredíssemos no tempo, para antes de toda a inovação. O setor financeiro, eles disseram, é sofisticado, capaz de lidar com todos os desafios. Havia um excesso de confiança.

Spiegel: Como o senhor determinou que o setor financeiro não era tão estável quanto parecia?

Rajan: Eu vi que os bancos estavam mais expostos a riscos em seus balancetes. Isso foi surpreendente, porque eles vendiam empréstimos arriscados com a ajuda daqueles novos produtos complexos e os removiam de seus balancetes. Mesmo assim, os banqueiros centrais estavam confiantes de que poderiam lidar com um maior risco por parte dos bancos, porque tinham lidado com a crise russa em 1998, com a quebra do fundo hedge LTCM e com o estouro da bolha pontocom em 2000. Por que não seríamos capazes de lidar com as próximas crises, eles argumentavam?

Spiegel: E tudo se desenvolveu de uma forma ainda mais dramática do que o senhor esperava.

Rajan: Sim, porque cada uma das crises anteriores ocorreu fora do sistema financeiro central. Mas a crise do crédito atingiu diretamente o centro.

Spiegel: Professor Rajan, obrigado pela entrevista.

Tradução: George El Khouri Andolfato

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