quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Os ases etílicos e a 'liberdade de bafo'

Quando uma sociedade nova como a nossa, não consegue estabelecer parâmetros rígidos de convivência social coletiva, sempre preocupada com o que está politicamente correto, chegamos a esse ponto, onde há uma enorme leniência fruto de uma grave confusão de conceitos e quebra dos respeitos fundamentais...ao outro.

Nossa solução resvala em um endurecimento da Constituição e do Código Civil, o que ninguém, tampouco o Congresso Nacional quer assumir.




Os ases etílicos e a 'liberdade de bafo'
EUGÊNIO BUCCI e MARIA PAULA DALLARI BUCCI
O ESTADÃO


Na edição de domingo, este jornal publicou a foto de um jovem sorridente, recostado no capô de seu automóvel de luxo, segurando um copo de vodca misturada com energético. Segundo a reportagem, assinada por Paulo Sampaio, o rapaz da fotografia, Bruno Cecchinato, de 22 anos, estava "com a voz embargada, rindo à toa", e prometia pegar no volante em seguida: "Tenho que ir para casa, velho". Isso numa cidade que registra, só neste ano, 16 homicídios dolosos no trânsito. Homicídios praticados, quase sempre, por motoristas alcoolizados. Estamos diante de uma nova modalidade de crime, produzida pela combinação de três fatores explosivos: um carrão importado, um exibicionista bêbado ao volante e um sistema de vigilância inoperante, que não consegue sequer obrigar o criminoso a soprar no bafômetro.

E por quê? "Ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo", recita o penalista contratado pelos ébrios pilotos, num argumento que vem encontrando cada vez mais acolhimento no Judiciário, e agora também no Superior Tribunal de Justiça. Não que o princípio geral invocado não seja justo. Ele tem fundamento. Nesses casos, porém, a sua aplicação mecânica carece de sentido histórico e resulta estapafúrdia.

Sem dúvida, todos têm direito de defesa e não se pode impor a um suspeito que, em lugar de se defender, produza a prova que demonstre sua própria culpa. Mas aqui não se trata disso. Impedir um motorista embriagado de seguir ao volante não constitui uma violação da sua liberdade de defesa, é um ato legítimo do Estado para proteger a vida dos que, trafegando na rua ou na calçada, podem estar ao alcance do veículo. Portanto, um sujeito que bebe todas e conduz o seu bólido a 160 por hora pelas avenidas da cidade não pode alegar que dispõe da "liberdade" de repelir o bafômetro.

Pois agora é assim. Os ases movidos a álcool contam com o auxílio da tese de que o bafômetro é uma intromissão inconstitucional na sua privacidade. Querem nos dar lições de liberdade, mas lhes falta o senso de proporção. As pessoas podem se embriagar o quanto quiserem, mas, definitivamente, não têm o direito de dirigir embriagadas, pondo em risco a vida alheia. Se o motorista já é obrigado, dentro da legalidade, a usar cinto de segurança, a portar sua licença e até a usar óculos ao volante (quando recomendado na carteira), além de manter os equipamentos de segurança de seu automóvel em ordem, por que é que ele não pode ser obrigado a estar sóbrio quando dirige?

Os defensores da hermenêutica que sacraliza o bafo do cliente milionário fazem de tudo para melar a Lei Seca. Trabalham para perpetuar, no Brasil, a vigência dos privilégios (como o de não soprar no bafômetro) acima da vigência dos direitos (como o direito à vida das suas vítimas). Na escravidão também foi assim: o direito de propriedade do senhor tinha mais valor que a liberdade do escravo.

Desde o primeiro tratado pelo fim do tráfico de escravos, assinado em 1810 por dom João VI, foram necessários quase 80 anos para derrubar uma ordem econômica baseada num argumento jurídico protoliberal. Os proprietários - e, mais que eles, os traficantes - sustentavam o seu direito de propriedade sobre as "peças". Em 1826, já imperador, dom Pedro I comprometeu-se a acabar com a escravatura em três anos. Não o fez. Em 1831, nova lei declarava que qualquer escravo que entrasse no território estaria em situação ilegal. Não adiantou nada. Nunca se importaram tantos. Foi necessária muita pressão dos ingleses para que, em 1850, a Lei Eusébio de Queiroz encerrasse, de direito e de fato, o tráfico negreiro no País.

Muitas batalhas jurídicas foram travadas até que, em 1871, fosse declarada a libertação das crianças filhas de escravas que nascessem a partir dali (Lei do Ventre Livre) e, 14 anos depois, a dos sexagenários (Lei Saraiva-Cotegipe). Nos dois casos, o que prolongou e acirrou as discussões, impondo a Joaquim Nabuco uma derrota eleitoral - ocasião em que partiu para a Inglaterra, onde escreveu O Abolicionismo - foi a invocação, pelos senhores, do direito a indenização pela perda da propriedade sobre os escravos já existentes e em potencial.

Enfim, somente depois de oito décadas a liberdade e o direito à vida e à dignidade prevaleceram sobre o interesse privado dos proprietários - e, mesmo assim, de maneira incompleta: como vaticinara Nabuco, não bastava acabar com a escravidão, era preciso desfazer a obra que ela nos legara.

Com essa história de privilégios bestiais às nossas costas, não nos deveríamos surpreender ao ver agora apresentada como natural uma tese jurídica precária, igualmente amparada pela lógica que favorece os de cima, embaraçando a plena efetivação da Lei Seca. A argumentação dos hiperindividualistas transforma o algoz em vítima, a pretexto da defesa das liberdades.

Mas como? Que sacrossanta liberdade individual está em jogo? A liberdade de dispor do próprio hálito? Francamente, parece conversa de bêbado.

A prevalecer esse hiperindividualismo um tanto etílico, estaríamos até hoje sem cinto de segurança, pois não caberia interferir na liberdade dos passageiros dentro dos seus automóveis particulares. Também não se poderia obrigar os motociclistas a usar capacete - cada um seria dono do direito de esborrachar a sua cabeça onde bem entendesse.

Se, no entanto, prevalecer a civilização, temos de ler a lei em seu contexto histórico. Muita gente entre nós já dirigiu embriagada um dia na vida. Também por isso, todos sabemos dos riscos implicados.

Já aprendemos a usar o cinto e a controlar a velocidade nas estradas. Está na hora de aprendermos a sobriedade. Ao menos na hora de dirigir. E de interpretar a lei.

Eugênio Bucci e Maria Paula Dallari Bucci; jornalista, é professor da ECA-USP e da ESPM; advogada, é doutora em Direito pela USP 
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