GUILHERME EVELIN -Época - 04/10/2010
Os rumos do Brasil, a partir de 2 de janeiro de 2011, vão depender de como o próximo presidente vai lidar com a sombra do lulismo – e de como Lula vai se comportar quando estiver fora do poder.
Nas seis eleições presidenciais disputadas desde a redemocratização do país, Luiz Inácio Lula da Silva foi candidato em cinco. Na sexta, o nome de Lula não apareceu na urna eletrônica. Paradoxalmente, a campanha presidencial de 2010 entra, porém, para a história como aquela em que seu protagonismo na política brasileira atingiu o auge. Lula impôs a seu partido, o PT, uma candidata totalmente inexperiente em disputas eleitorais, transformou-a em favorita – transpondo, em muitas ocasiões, os limites da lei e das boas práticas republicanas – e agora está muito próximo de elegê-la como sucessora. Navegando em índices quase escandalosos de popularidade, próximos dos 80% de aprovação, Lula viu a própria oposição, de forma canhestra, tentar se associar a seu sucesso.
No exterior, Lula, cada vez mais, é comparado a Nelson Mandela, o estadista que liderou a África do Sul na superação do regime do apartheid. Em comum, Lula e Mandela têm trajetórias míticas que se confundiram com as aspirações das sociedades que governaram – a história da ascensão de Lula, de retirante nordestino a presidente da República, espelha o sonho de milhões de brasileiros. A aura mitológica que cerca a figura de Lula explica, porém, apenas em parte o fenômeno político do “lulismo”. O mito não teria ganhado força se não estivesse fundamentado numa base sólida. Sob a presidência de Lula, o Brasil termina a primeira década do século XXI como uma força emergente no mundo.
O símbolo dessa nova relevância internacional foi a escolha do país para sede das Olimpíadas de 2016. Mas ela se reflete em vários outros indicadores. Enquanto os países mais desenvolvidos do mundo ainda tentam se recuperar da crise financeira internacional de 2008, a economia brasileira pode fechar este ano com a taxa de crescimento mais alta desde 1985. Nos últimos oito anos, o número de trabalhadores com carteira assinada cresceu, em média, a um ritmo de 1,2 milhão por ano. A desigualdade social e a pobreza também caíram – o porcentual de brasileiros abaixo da linha de pobreza recuou de 28% para 15,5%. Esses resultados podem ser consultados a partir da página 75, num levantamento feito por ÉPOCA de 100 indicadores de 18 diferentes áreas.
Para alcançá-los, Lula soube surfar nas reformas feitas por seu antecessor – o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – e teve a sabedoria de manter a política macroeconômica instituída no governo anterior. Contou também com uma boa dose de sorte: o Brasil foi beneficiado pela ascensão da China, voraz consumidora das commodities agrícolas e minerais brasileiras. Essa mesma sorte apareceu na descoberta pela Petrobras das imensas jazidas de petróleo na camada pré-sal. Mas é indiscutível que o sucesso do governo Lula se deve, em larga medida, a seus méritos. Lula foi inovador na área social ao criar o programa Bolsa Família, que deu escala e uniu vários programas de transferência de renda antes espalhados pela administração federal. No enfrentamento da crise financeira internacional, a maior desde a depressão dos anos 30, Lula contrariou as recomendações dos economistas mais cautelosos e apostou na expansão dos gastos do governo, do crédito e do consumo. Foi ousado – no discurso e nas medidas – e acertou. O Brasil saiu mais cedo da crise do que outros países.
Tudo isso somado, Lula vai deixar alguns pesados desafios para seu sucessor, que um certo triunfalismo oficial hoje tenta obscurecer. “O fato de que o Brasil está entre os dez países mais desiguais do mundo mostra que a agenda da redução da pobreza e da desigualdade social ainda está longe de ser uma obra completa”, diz o economista Marcelo Néri, da Fundação Getulio Vargas e especialista em estudos sobre a pobreza. A educação precária e a criminalidade mostram também que o país ainda tem um longo caminho a percorrer antes de entrar no clube das nações desenvolvidas.
Na agenda do próximo presidente, estão também as reformas da legislação previdenciária, trabalhista e tributária. Se não tivessem sido relegadas por Lula, apesar do capital político acumulado por ele, talvez a economia brasileira estivesse crescendo hoje num ritmo ainda mais forte. Outro desafio será encontrar o papel adequado para o Brasil no novo cenário externo – a desajeitada aproximação com o Irã de Mahmoud Ahmadinejad suscitou críticas e mostrou que a política externa dos últimos anos tentou dar passos maiores do que o real poder do país permite.
Talvez o maior problema legado por Lula a seu sucessor, porém, seja a sombra de sua liderança personalista. Quando Lula despreza as leis ou ataca a imprensa, esse personalismo suscita interrogações, entre os analistas políticos, sobre se o lulismo significará a retomada de um velho ciclo autoritário, com raízes no passado brasileiro, em que um Estado forte se sobrepõe à sociedade. Muitas dessas dúvidas só poderão ser respondidas a partir do comportamento de Lula, quando ele não estiver mais no Palácio do Planalto.
Em entrevista à revista The Economist, publicada na semana passada, Lula disse que um “ex-presidente precisa ir para um lugar quieto e deixar quem foi eleito errar e acertar, mas deixá-lo governar o país”. Na mesma edição, a revista publicou um editorial em que disse que Lula precisa dar “independência”. “O próximo presidente precisará ter, por um bom tempo, algum tipo de aliança com Lula. O maior fantasma em 2011 seria colocar Lula na oposição ao recém-eleito. Evitar isso exigirá grande habilidade do novo governante, mas também uma postura construtiva de Lula”, diz o cientista político Fernando Abrucio. Qualquer que seja o próximo ocupante do Palácio do Planalto, já está claro que a forma como Lula vai descer do pedestal ditará os rumos políticos do país daqui para a frente.
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