quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O Egito pós-Mubarak: os atores parecem à altura de um bom enredo democrático

Bolívar Lamounier 

Avaliar de longe o que se passa no Egito é obviamente muito difícil. Por mais que se leia, o fato é que se trata de um país complexo atravessando uma situação complexa.

Minha impressão é que as coisas vão muito bem. Mubarak teve o seu momento de glória.

Desempenhou um papel importante após a morte de Sadat. Mas isso foi há trinta anos. Num percurso tão longo, qualquer um se desgasta, mas ele se desgastou muito. Perdeu pé na realidade do país, usou e abusou da violência e, segundo consta, chafurdou na corrupção.

Não ter designado um vice-presidente é um pequeno detalhe que diz muito sobre sua concepção de poder. Pretendia agarrar-se a ele até quando desse, provavelmente pensando que daria ad aeternum. Não deu.

Com a percepção moldada pelas realidades da América Latina, eu obviamente não iria acolher com entusiasmo o controle do poder pelos militares. Acolhi-a com realismo e frieza. Sem Mubarak na equação, o essencial é assegurar a melhor transição possível para um governo civil e democrático. Para isso é preciso constitucionalizar o país, assegurar a eficácia e a confiabilidade da maquinaria eleitoral e dar algum tempo para as forças políticas se organizarem e encontrarem seus respectivos pontos de coagulação.

Pelo que tenho lido e ouvido, os militares vêm conduzindo essa agenda com sensibilidade e lucidez. Não descarto a necessidade de escrever o contrário dentro de alguns dias ou semanas, mas é esta, até agora, a minha leitura da situação interna do país.

Num enquadramento mais amplo, parece-me bem provável que uma nova onda de democratização esteja se configurando. Sou levado a acreditar nisso, talvez em parte por wishful thinking, mas principalmente pela derrubada do ditador de plantão na Tunísia, pelo sucesso dos protestos no Egito e pelos sinais que começam a aparecer aqui e acolá: leia-se no Iêmen e na Argélia, desde logo.

Para ver o quadro inteiro, é preciso encaixar mais alguns fatos. Alguém imaginava que os países árabes viriam a ser a bola da vez? Eu não imaginava, e até agora não encontrei na imprensa ninguém disposto a investir nessa potoca.

Estará o islamismo radical na moita, só aguardando o momento certo para empalmar e controlar as lutas pela democracia? Também não vejo sinais disso. Sim, a Irmandade Muçulmana está lá, está atenta, deve estar agindo, mas daí a dizer que está com um pé no estribo para tomar o poder vai uma certa distância.

Eis o que estou tentando dizer: o que há é um movimento amplo, pluri-classista, pluri-profissional, pluri-isto e aquilo. Como ocorreu no Brasil em 1984 com a campanha das Diretas-Já.

Há uma multidão pedindo democracia e reformas, reclamando da situação econômica e obviamente mostrando que aprendeu alguns truques novos. Aprendeu que celulares, Iphones etc podem ser utilizados para muitos fins, inclusive alguns bastante úteis.

Um quarto de século atrás, o governo chinês não gostou nem um pouco de saber como as notícias da Praça Tianamen chegaram ao Ocidente. Alguém se lembra como elas chegaram?

Eu me lembro: chegaram nas asas de um dinossauro chamado fax. Comparados ao fax, os gadgets atuais têm um imenso potencial libertário. Recebem do exterior e mandam para o exterior uma quantidade enorme de informações, tudo online e com muito mais qualidade.

Espero que o leitor não perca a paciência por eu estar repisando coisas tão óbvias. O que eu quero dizer é que os ventos de Pandora estão espargindo um novo ânimo democrático por toda parte. Por todos os cantos do planeta. Por favor, observem que sublinhei a expressão ânimo democrático. Ânimo é uma coisa, realidade é outra. Ânimo democrático é desejo, sonho, vontade de democracia.

Estou falando de um ânimo e sugerindo que se trata de algo “novo”. Seus portadores são multidões como a que acorreu durante 18 dias à praça Tahir no Cairo. Lá no meio com certeza havia oradores inflamados, militantes de pequenos grupos radicais e aspirantes a ideólogos, alguns destes provavelmente ainda seguros de conhecer de antemão as etapas do processo histórico. Mas isto é o que menos interessa.

A questão, salvo um redondo engano, é que estamos na ante-sala de algo grande, muito grande. Esse novo ânimo democrático não será detido facilmente. O governo que quiser pará-lo na base da violência precisa estar disposto a derramar muito sangue. Neste aspecto eu já contei dois pontos para os militares egípcios. Eles compreenderam rapidamente que a situação é nova.

Que os manifestantes não queriam destruir o país. E que não faria o menor sentido matar um monte de gente para preservar um governo em adiantado estado de putrefação.

Mas atenção, atenção. Eu não sou ingênuo a ponto de ver o bem em tudo o que vem da massa e o mal em tudo o que vem dos governos. Isso, decididamente, não é o que eu penso. Até aqui, acho que os dois lados merecem aplausos. Nota 10. Mas as próximas etapas não serão mais simples ou mais fáceis. Até concluírem a nova Constituição, as novas regras eleitorais etc etc , as agruras econômicas não vão desaparecer.

O que vai desaparecer ou pelo menos diminuir muito é a fantasia, o sonho, a sensação de viver um momento único na vida do país. Uma comunhão total de todo mundo com todo mundo.

Enquanto o sonho se esvai, o general Realidade vai entrando em cena. Vai chegando de mansinho, mas vem acompanhado por todo o seu séquito de desencantos e aborrecimentos.
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