O ESTADO DE S. PAULO
O contencioso comercial do Brasil com os Estados Unidos pode se complicar muito se for reaberta, no âmbito da OMC, unilateralmente, uma questão que estava resolvida, a saber, das reparações que o Brasil recebe como compensação pelos subsídios que o governo americano dá à produção algodoeira local. Sob o pretexto de ajudar no ajuste fiscal - tema politicamente crítico nos EUA -, o deputado Ron Kind, democrata do Wisconsin, quer emendar o orçamento, cortando os valores que vêm sendo transferidos ao Instituto do Algodão do Brasil. Se a proposição prosperar e for aprovada, o acordo bilateral obtido em 2009, em cumprimento de decisão da OMC, perderá validade, reabrindo-se a discussão sobre formas de retaliação, que podem tomar um rumo indesejável.
A proposta do congressista americano não contribuirá certamente para elevar as vendas externas de seu país e criar mais empregos, que é o desafio número um de Washington. O comércio com o Brasil no ano passado deixou um superávit de US$ 7,73 bilhões a favor dos EUA, o maior obtido por aquele país com seus parceiros globais. Mas o que o Brasil aspira não é impor gravames aos produtos originários dos EUA, mas, sim, exportar mais para o maior mercado do mundo.
Esta, aliás, sempre foi a posição brasileira desde que a OMC, em 2004, nos deu vitória no processo contra os EUA por causa dos subsídios ao algodão. Iniciou-se então um longo processo para se chegar a um acordo com Washington, quase cinco anos depois, quando a OMC fixou em US$ 829 milhões o valor que o Brasil poderia aplicar em retaliações contra produtos americanos importados. Como o governo brasileiro não desejava punir empresas que nada tinham a ver com a disputa, e uma medida como esta seria também desvantajosa para os nossos interesses comerciais, os EUA concordaram em pagar ao Brasil a quantia fixada pela OMC em parcelas de US$ 147 milhões por ano.
É uma ninharia em face do déficit fiscal dos EUA, estimado em US$ 1,6 trilhão no ano fiscal de 2011, correspondendo a 11% do PIB. Se o congressista Kind quer contribuir para a redução do déficit público de seu país, deveria propor a extinção dos subsídios agrícolas concedidos por Washington, medida, aliás, que vem sendo preconizada por setores políticos americanos. Os EUA distribuem entre US$ 10 bilhões e US$ 30 bilhões de subsídios por ano a cerca de 800 mil produtores rurais, dependendo da situação dos preços de mercado, dos prejuízos causados pelas condições climáticas e de outros fatores. Cerca de 90% desses subsídios vão para cinco produtos - trigo, milho, soja, arroz e algodão.
Com a alta das commodities no mercado internacional, não haveria melhor momento do que o atual para acabar com os subsídios. Praticamente todos os produtos subsidiados vêm tendo cotações muito acima do normal, o que é tanto mais verdadeiro com relação ao algodão, cujas cotações no mercado internacional batem recordes. Com as enchentes na Austrália e no Paquistão e a seca em outros países produtores, ao lado de uma demanda ainda muito aquecida por parte da China, o preço do algodão superou, pela primeira vez, a marca de US$ 2 por libra-peso neste mês. Só neste ano, os preços do algodão em bruto aumentaram 35%, a maior alta de todas as commodities, segundo o índice Reuters/Jeffries. E os EUA são de longe o maior exportador do produto.
Como observou Pedro Camargo Neto, presidente da Abipecs, e um dos mentores do processo do algodão na OMC, a decisão do órgão de conceder uma compensação ao Brasil, como país prejudicado pelos subsídios agrícolas - política que está longe de ser exclusiva dos EUA -, colocou um holofote sobre uma prática que ocasiona tantas distorções no comércio internacional, e cuja abolição o Brasil tem a obrigação de defender em todos os foros internacionais.
Se prevalecer o protecionismo nesse caso, forçando o governo brasileiro a impor restrições que não deseja sobre importações americanas, a Rodada Doha seria ainda mais prejudicada, e a própria OMC seria abalada em seus fundamentos.
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