domingo, 27 de fevereiro de 2011

O Protocolo Adicional

JOSÉ GOLDEMBERG 
O Estado de S.Paulo 

Há 35 anos, pelo menos, se discute no Brasil o interesse do País em manter aberta a opção de produzir armas nucleares. O jornalista Elio Gaspari, em seu livro A Ditadura Encurralada, descreve o que ocorreu na 2.ª Reunião do Alto Comando das Forças Armadas, em 20 de junho de 1975, sob a Presidência do recém-empossado general Ernesto Geisel. O presidente comunicou que o acordo Brasil-Alemanha para a instalação no País de oito grandes reatores nucleares e transferência da tecnologia nuclear estava muito adiantado e esclareceu: "Eu não estou dizendo que o propósito do governo seja este, de procurar fazer arma nuclear, mas nós temos que nos preparar, tecnologicamente, etc., e ficarmos em condições de podermos prosseguir nesse caminho, conforme as circunstâncias".

Na época o Brasil não havia assinado o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), de 1968, pelo qual os países que ainda não dispunham de armas nucleares se comprometiam a não desenvolvê-las, "congelando" uma situação em que só os "cinco grandes" - Estados Unidos, União Soviética, Inglaterra, França e China - as possuíam.

Esse tratado pode parecer discriminatório, mas impediu a proliferação nuclear durante várias décadas. O presidente Kennedy, na década de 1960, acreditava que no fim do século mais de 20 países possuiriam armas nucleares e que essas armas seriam usadas em conflitos regionais com o risco de provocar uma conflagração mundial.

Para os "cinco grandes", a posse das armas nucleares desencorajou ataques nucleares preventivos em razão do temor da retaliação. Bem ou mal, essa visão impediu uma guerra nuclear entre as grandes potências e, com o fim da "guerra fria", as grandes potências reduziram progressivamente seus arsenais nucleares. O último acordo entre os Estados Unidos e a Rússia, recentemente aprovado pelos dois países, reduziu o arsenal nuclear americano de dezenas de milhares de ogivas para pouco mais de mil. O objetivo final desses acordos é, nas palavras do presidente Obama, "um mundo sem armas nucleares".

Índia, Paquistão, África do Sul e Coreia do Norte desenvolveram armas nucleares, mas é de notar que esses países o fizeram porque a sua própria existência como nação estava ameaçada. A África do Sul, após o fim do apartheid, desmantelou seu programa nuclear.

É, portanto, o caso de perguntar qual a justificativa para o Brasil manter aberta, em 1975, a opção nuclear. O País não enfrentava problemas de sobrevivência nacional. A posse de armas nucleares certamente atrairia a atenção das grandes potências, que manteriam apontados para nós mísseis intercontinentais. Mais ainda, de que serviriam armas nucleares, sem foguetes de grande alcance para transportá-los? Elas nos protegeriam de quem? Da Argentina?

Não havia, de fato, nenhuma justificativa racional, exceto os sonhos de grandeza de alguns civis e militares mais exaltados. Apesar disso, o governo brasileiro, mesmo após o fim do regime militar, prosseguiu acalentando ambições nucleares com programas nucleares "paralelos" conduzidos pelas Forças Armadas, que só foram enfrentados firmemente pelo presidente Collor, em 1991, que compreendeu que não seriam armas nucleares que tornariam o Brasil uma grande potência, mas sim a solução dos problemas de subdesenvolvimento do País.

O acordo com a Argentina, que criou a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC), assinado na ocasião, introduziu inspeções mútuas de especialistas dos dois países na área nuclear e abriu caminho para que em 1994 o Brasil se tornasse signatário do TNP. Na prática, essas medidas restabeleceram a credibilidade internacional de que os dois países não estariam procurando desenvolver armas nucleares.

Ainda assim, persistem hoje no País - e dentro do governo - vozes influentes que tentam ressuscitar programas para produção de armas. O próprio vice-presidente da República e alguns ministros do governo Lula manifestaram essas intenções, sem que o presidente, em nenhum momento, os tenha desautorizado. Mais ainda, o governo se recusou a assinar o Protocolo Adicional da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), que abre caminho para a fiscalização de todas as instalações nucleares do País (mesmo as "não declaradas"). Atualmente, a agência internacional só tem autorização de inspecionar as instalações nucelares declaradas.

Argumentar que essas inspeções violam a soberania nacional estimula a agência a suspeitar de que elas existam mesmo, o que é precisamente o que está ocorrendo no Irã e que já motivou a série de sanções que o Conselho de Segurança aplicou àquele país. Há muitas formas de exercer soberania nacional, e essa não é a melhor delas. Em outras áreas, inspeções internacionais são corriqueiras, e o Brasil não estaria exportando carne para a Europa se não permitisse, em nome da soberania nacional, inspeções sanitárias.

A principal razão alegada para se recusar a assinar o Protocolo Adicional é que o Brasil exporia segredos industriais no processo de enriquecimento de urânio que foi desenvolvido no País, mas esse argumento não tem bases técnicas sérias. Os inspetores da AIEA não são espiões, mas sua missão é se certificar de que atividades nucleares que levem à produção de armas nucleares sejam detectadas a tempo. A grande maioria dos demais países signatários do TNP aceita as inspeções.

O TNP não impede que se continue a enriquecer urânio para abastecer reatores nucleares, se esse enriquecimento se destinar apenas à produção de energia elétrica, ou seja, a uma porcentagem inferior a 20%. E isso já está ocorrendo na usina de enriquecimento de urânio em Resende, que está sob fiscalização tanto da ABACC quanto da Agência Internacional de Energia Nuclear.

Assinar o Protocolo Adicional não limitará atividades nucleares para produção de energia no País.


PROFESSOR DA USP
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