Correio Braziliense
Dois projetos de lei que tramitam na Câmara e no Senado têm visões opostas. Um permite a candidatura de pessoas que não sabem ler, enquanto o outro veta essa possibilidade
A eleição do palhaço Tiririca (PR-SP), deputado federal mais votado neste ano, com mais de 1,3 milhão de votos, levantou uma polêmica que deverá ser discutida nos próximos dois anos, quando os brasileiros voltarão às urnas para eleger os novos representantes municipais: os analfabetos têm o direito de se candidatar? Dois projetos de lei divergentes tramitam no Senado e na Câmara. A proposta mais antiga, do deputado federal Manoel Júnior (PSB-PB), proíbe o analfabeto funcional — aquele que tem menos de quatro anos de estudos — de disputar as eleições. Na contramão, um projeto do senador Magno Malta (PR-ES), inspirado no caso Tiririca, classificado de analfabeto funcional, prevê a elegibilidade para quem não sabe ler ou escrever.
A Legislação atual não permite que analfabetos se candidatem a cargos eletivos. No entanto, nesse grupo não estão incluídas as pessoas incapazes de ler, escrever, interpretar e usar as operações matemáticas básicas nas funções de seu cotidiano. Neste ano, 924 candidatos registraram que sabiam apenas ler e escrever ou tinham ensino fundamental incompleto, ou seja, que poderiam se enquadrar nas condições de analfabeto funcional. Eram cinco para governador, quatro para senador, 219 para deputado federal e 672 para deputado estadual ou distrital. Outros cinco candidatos declararam ser analfabetos.
Para Magno Malta, reeleito este ano, a legislação é discriminatória. Ele argumenta que o analfabetismo não torna as pessoas incapazes ou menos inteligentes. “O homem tem que ser medido pelo seu caráter. Os escândalos passam pelos sábios”, afirma. A defesa do senador é embasada no número de analfabetos registrados no Brasil. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), até 2009 havia 14,1 milhões de brasileiros de 15 anos de idade ou mais sem saber ler e escrever, o que correspondia a 9,7% da população. Os analfabetos funcionais faziam a população iletrada subir para 20,3% do total.
“Em um país que não dá condições à população de estudar, é incoerente uma legislação que exclui os analfabetos. Eles têm o direito de votar, mas não podem ser votados”, pontua Malta. O senador compara as pessoas que não sabem ler e escrever com os deficientes visuais. Segundo ele, assim como os cegos, os analfabetos receberão o apoio dos assessores.
O deputado Manoel Júnior, entretanto, ressalta que nem toda prefeitura ou Câmara Municipal tem um corpo técnico eficiente para assessorar os políticos. “A nossa legislação é complexa. O prefeito de uma cidade pequena pode acabar cometendo um crime de improbidade por desconhecimento da lei”, argumenta. Ele afirma que sua proposta não é discriminatória, pelo contrário. Segundo o socialista, a ideia é proteger os analfabetos de entrarem “numa fria”.
Avaliação
No Projeto de Lei Complementar n° 47/07, que trata do assunto, Manoel Júnior, que também se reelegeu, ainda autoriza o juiz eleitoral a realizar perícia para a comprovação do analfabetismo por meio de uma comissão formada por pedagogos e professores de matemática e de português. Atualmente, essa avaliação é definida pelo próprio magistrado, sem regulamentação específica.
Especialistas divergem sobre o assunto
A discussão em relação aos direitos dos analfabetos de assumirem um cargo eletivo é polêmica em um país que ainda se encontra entre os piores colocados no ranking internacional de ensino. O Brasil está na 53ª colocação entre 65 nações no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), elaborado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Para a professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Daisy Cunha, o analfabeto tem capacidade de exercer um cargo eletivo. “ O fato de não saber ler ou escrever não significa, necessariamente, que a pessoa é ignorante”, afirma. Com base no caso do palhaço Tiririca, cujo slogan de campanha era “vote no Tiririca, pior que tá não fica”, a educadora questiona: por que um contigente expressivo da população votou em candidatos que não apresentaram propostas consistentes num contexto em que os direitos sociais ainda não estão universalizados? “Nesse caso, poderíamos nos perguntar se o mais problemático não seria o persistente analfabetismo político que essa expressiva votação revela”, diz. Ela defende que participar de uma disputa política é direito de todo cidadão. “Nós lutamos anos para que os analfabetos pudessem votar. Por que eles não podem também ser eleitos?”, questiona.
O cientista político Fábio Wanderley Reis vê essa defesa em torno da candidatura do analfabeto como filosofia. Ele argumenta que o analfabeto terá dificuldades operacionais, independentemente de ter uma pessoa o assessorando. Para Reis, não é comum uma pessoa que não saiba ler, escrever ou interpretar o que está lendo ter uma noção social ampla, suficiente para exercer um cargo no Executivo ou no Legislativo. “O correto seria que todos tivessem a oportunidade de ter uma boa educação”, acrescenta.
De opinião contrária, o advogado Rodolfo Viana afirma que existem muitos analfabetos funcionais no país engajados politicamente e que têm uma capacidade de compreensão dos problemas sociais às vezes muito maior que a de pessoas letradas. “ O papel do parlamentar não é o de escrever, é o de fiscalizar e debater com a sociedade”, acredita Viana.
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