Luiz Inácio Lula da Silva diria que completa hoje um ciclo "extraordinário" da História brasileira. É o segundo presidente a ficar oito anos consecutivos no poder, em plena democracia - feito idêntico ao de FH. Ainda passa a faixa a quem apoiou nas eleições, Dilma Rousseff, fato inédito na República na vigência do estado de direito democrático. E desce a rampa do Planalto nos píncaros da popularidade, com índice de aprovação acima dos 80%, pulverizando a regra segundo a qual o exercício longevo do poder desgasta. Costuma-se dizer que apenas o distanciamento histórico permite avaliações serenas, diluídas as paixões ideológicas e partidárias. Ainda mais quando se trata de um personagem que ultrapassou os limites entre a política e a mitologia, com pitadas de culto à personalidade - não desestimulado por ele. Sintomático que, no último pronunciamento em rede nacional, Lula tenha parafraseado a carta-testamento de Getúlio.
Mas não é preciso esperar o tempo passar. Há aspectos positivos indesmentíveis na Era Lula: a redução da miséria (20,5 milhões resgatados desta situação, segundo a FGV), com a ampliação de classes médias baixas; e também a defesa da estabilização da economia. Lula patrocinou a menor taxa de desemprego jamais calculada (5,7%) e deixa a economia num ano de crescimento de cerca de 7,5%, porém com a contrapartida da inflação em alta. No plano político, usou o bom senso aplicado na questão econômica no primeiro mandato para contornar o risco de grave crise institucional, ao rejeitar o projeto continuísta.
Mas é preciso mesmo esperar para se saber o que será determinante para a História: se os resultados positivos ou o lado negativo destes oito anos, combatido à base de maciça propaganda ufanista. Para quem apenas ouve o discurso dos poderosos de turno, o Brasil foi campeão no torneio de crescimento mundial. Longe disso. Há meses, o conhecido colunista econômico do "Financial Times" Martin Wolf registrou que, de 1995 a 2009, período de FH e Lula, a participação brasileira no PIB do planeta caiu de 3,1% para 2,9%. Estatísticas sobre o comércio internacional não são melhores: apesar do salto das exportações brasileiras, o peso do país nas trocas mundiais se encontra estacionado em pouco acima de 1%. Tampouco a política externa serviu ao propósito de abrir mercados. Inspirada num antiamericanismo juvenil, a diplomacia companheira caiu na ilusão terceiro-mundista do diálogo "Sul-Sul" num mundo cada vez mais multipolar. Um contrassenso. Se foi anêmico o crescimento durante a gestão FH ---- que enfrentou conjuntura mundial muito diferente da de que se beneficiou Lula -----, nos últimos oito anos o país também continuou a patinar em termos de expansão comparativa do PIB. Mas o discurso oficial trata o fracasso como grande sucesso. Em qualquer comparação que se faça, a posição do país não corresponde ao ufanismo sem medidas: no período Lula, entre os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China), o país é que tem a menor média de expansão anual - 4% contra 4,8% dos russos, 8,2% da Índia e 10,9% dos chineses. Mesmo na América Latina, o Brasil fica abaixo da média do continente (4% contra 4,64%). Supera apenas o México (2,1%).
Problema nada desprezível são os juros elevados - os 10,75% mantêm o país no desabonador posto de líder mundial nos juros reais (deduzida a inflação). Algo como 5% anuais, quando a tônica tem sido em torno de 2%, mesmo entre os emergentes. Já foram muito mais elevados, é verdade. Como causa básica do problema estão gastos públicos crescentes, marca do governo Lula, principalmente no segundo mandato, característica enaltecida por parte do PT. E, sem conseguir reduzir os juros naturalmente, impossível elevar a taxa média de crescimento, e mantê-la por longo prazo, a fim de eliminar de vez a miséria. O gasto público sem controle conspira contra o combate à pobreza.
O Brasil cresceu porque foi puxado por um dos mais longos e consistentes ciclos de crescimento mundial sincronizado, com a China na função de locomotiva. O país surfou a onda, mas não conquistou novos espaços. Poderia ter conquistado, caso a política de estabilização executada por Lula no início do primeiro mandato, para conter os efeitos negativos decorrentes da compreensível reação dos mercados às perspectivas de um governo do PT, tivesse, como sequência, as reformas da Previdência, tributária, da esclerosada legislação trabalhista, entre outras. Mas o governo preferiu a capitalização político-eleitoral de curto prazo, e não a preparação do país para um longo ciclo de crescimento sustentado. Em vez de investimentos, nas dimensões necessárias, na melhoria da qualidade do ensino básico, privilegiaram-se gastos de custeio (salários de servidores e contratações); em vez de aperfeiçoamento e ampliação da infraestrutura, aumentos reais excessivos do salário mínimo, sem preocupação com o impacto na Previdência. E, quando surgiu o PAC, emergiu a incompetência gerencial de uma burocracia inchada de servidores e controlada por corporações sindicais aliadas.
Com a economia estabilizada, o crescimento em aceleração e o consequente aumento da arrecadação tributária, ficou mais visível o projeto lulopetista do "Estado forte": carga tributária elevada (36% do PIB) e a ingerência do poder público na "indução" ao desenvolvimento. Inevitável que junto a este modelo brotassem ranços políticos autoritários. Lula se despede com o mantra de que defende a liberdade de imprensa e expressão. Mas algumas iniciativas do governo foram em sentido oposto.
A crise mundial, deflagrada em fins de 2008, viria a conceder a Brasília a licença para gastar ainda mais em custeio ---- peça fundamental no projeto político-eleitoral de 2010 ----- e a usar instrumentos heterodoxos, arriscados, na capitalização de bancos estatais. O movimento mais notório foram os R$180 bilhões destinados ao BNDES por meio do endividamento público. A parte mais clara deste projeto estatista, uma reprodução do intervencionismo do governo militar de Ernesto Geisel, está na mudança do sistema de exploração do petróleo, para restabelecer parte do monopólio da Petrobras, torná-la operadora única nas áreas do pré-sal a serem licitadas, convertendo-a em instrumento de uma arriscada política de substituição de importações de equipamentos. A Viúva pagará a conta da aventura, como já aconteceu após Geisel.
Também é negativo o balanço na política no aspecto do seu garroteamento pelo estilo fisiológico de negociação de alianças imprimido pelo lulopetismo. No primeiro mandato, construiu-se o esquema do mensalão, para azeitar o apoio parlamentar ao governo. Vitorioso Lula em 2006, o lulopetismo foi mais objetivo na montagem da base do segundo mandato: negociou verbas e vagas no ministério com o PMDB e partidos menores, sem pudor - fórmula repetida na construção da equipe que assume com Dilma amanhã. A política com "p" maiúsculo terminou emasculada. Antigas aliadas ideológicas, corporações sindicais foram convidadas ao banquete de repartição do butim do imposto sindical, na contramão da proposta de um sindicalismo "não varguista", independente do Estado, feita por novos líderes metalúrgicos do ABC paulista no final da década de 70/início dos anos 80, Lula à frente deles. Até a outrora combativa UNE virou correia de transmissão do governo, cevada a doses generosas de dinheiro do Tesouro.
Não se desmerecem a inteligência e a competência políticas de Lula e do PT. Mas a realidade é a realidade, e há armadilhas engatilhadas no exercício do poder pelo lulopetismo que precisam ser desarmadas para o bem do governo Dilma e do país. Warren Buffett, bilionário americano, criou uma imagem célebre: "Somente quando a maré está baixa é que se pode ver quem está nadando nu." E a maré da bonança mundial está na vazante há algum tempo.
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