O Globo
Nunca antes na história do Natal o bom velhinho havia se oferecido como presente.
Como um Papai Noel escondido no próprio saco, Luiz Inácio da Silva se despediu dos brasileiros pedindo que não lhe perguntem sobre o seu futuro.
É surpresa. O futuro a Deus pertence, mas está sendo negociado com o PMDB. E eles devem estar se entendendo bem, a julgar pelas derradeiras palavras do Papai Noel do ABC, senhor de todos os cargos: ele voltará.
A pista já tinha sido dada pelo escudeiro Gilberto Carvalho. O chefe de gabinete de Lula será secretário-geral da Presidência de Dilma, mas já mostrou em público, em entrevista ao GLOBO, quem é o dono da sua lealdade. Falando quase como um analista político, Carvalho diz que talvez Dilma faça um bom governo (“um cenário”). Mas, se “houver dificuldades”, volta Lula. Depois de toda a pantomima feminista, a primeira presidente assume com um asterisco bordado na faixa.
A rigor, Dilma é o asterisco. A faixa todo mundo sabe de quem é. E assim se deu a transição mais exótica da história deste país. Uma presidente eleita que não fala nada à nação, fora a laranjada retórica de sempre. A guerra do Rio, o ajuste fiscal, o orçamento do PAC, a subida da inflação — nada mereceu uma palavra da nova líder dos brasileiros. Ela saiu do banho de urna direto para a cozinha da repartição de cargos. Os assuntos nacionais ficaram com o homem da casa.
E ele já deixou claro a prioridade do governo tampão: engordar a mística do filho do Brasil. “Vamos desmontar a farsa do mensalão”, tem dito Lula aos quatro ventos. Com seus índices sobre-humanos de aprovação popular, o ex-operário vai virando uma espécie de pastor da verdade suprema. Sua última tacada foi comparar o escândalo do valerioduto ao caso da Escola Base — em que a imprensa condenou inocentes. Nesse ritmo, se tudo der certo, Marcos Valério, José Dirceu, Delúbio e o restante da quadrilha ainda acabam indenizados pelo contribuinte. Depois da bolsa ditadura, a bolsa mensalão.
Na última reunião com a executiva do PT, Lula decretou que uma das três prioridades do governo da enteada do Brasil é a “democratização dos meios de comunicação” — expressão que todos já aprenderam o que significa. É o tal controle social da mídia, ou, para bom entendedor, a conversão do noticiário ao ibope.
Com uns 80% de manchetes favoráveis ao governo popular, a comunicação começará a ser considerada democrática.
E ainda chegará o dia em que o mensalão nunca terá existido.
A cruzada em direção à verdade suprema agora é para valer. “Quero ver quem vai afinar, hein?”, desafiou Lula na reunião do PT, em seu comício sobre o enquadramento da mídia. A turma está bem ensaiada. O ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, que na alquimia Lula/Dilma virará ministro das Comunicações, já deu o tom, em declaração ao “Estadão”: “Não é sensato simplesmente achar que a imprensa pode tudo e o cidadão, o político — porque político também é gente — não têm direito a nada”.
Realmente, ninguém aguenta mais esse massacre dos jornalistas sobre os políticos, que de fato são gente — às vezes muita gente, como nas repartições controladas pelo PT. A imprensa tem causado danos irreparáveis ao governo popular, como ao interromper a trajetória promissora da ex-ministra Erenice Guerra, que também é gente.
Quando o Brasil entender que traficar influência é humano, o caso Erenice será mais uma Escola Base.
O importante, como disse o chefe, é não afinar. Mirem-se no exemplo do inesquecível Paulo Vannuchi, o Ahmadinejad do humanismo. Depois de engendrar vários tipos de pedradas na imprensa em seu plano de direitos humanos, o ministro se despede do governo gritando que foi linchado pela mídia. Talvez o único erro de seu plano seja não ter sido apresentado no Irã.
Mas apresentando-se como vítima da imprensa burguesa, Vannuchi pode virar esse jogo. O folclore do oprimido é um sucesso no Brasil, e um apedrejador chorão também é gente.
Se o pessoal não afinar e os projetos de regulação da mídia enfim prosperarem, a vida no governo tampão será bem mais fácil. Num caso como o da lambança do Enem, por exemplo, talvez nem seja mais necessário o pastor da verdade bradar que “o Enem foi um sucesso extraordinário”. Imprensa boa é imprensa acuada. Nas manchetes, do exame em si ao próprio ministro Fernando Haddad e seus indicadores educacionais estagnados, tudo terá, em média, 80% de aprovação.
Ninguém ficará perseguindo injustamente a família Sarney, que estará mais à vontade em sua vida privada no Senado — quem sabe até estendendo um varal de roupas no plenário. Sarney poderá indicar os ministros que quiser sem questionamentos — tudo na mais santa paz à espera de 2014, ano da volta triunfal do bom ve lhinho ( não aquele do motel pago pelo contribuinte, naturalmente).
GUILHERME FIÚZA é escritor.
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