segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O complexo do Alemão e a república

Luiz Werneck Vianna
VALOR ECONÔMICO

Com o episódio de ocupação do complexo do Alemão, santuário do narcotráfico encravado em uma região estratégica da cidade do Rio de Janeiro, a experiência republicana brasileira trava uma batalha que não admite recuo. É vencer ou vencer, embora as circunstâncias não lhe sejam afortunadas, quer porque ela não teve como escolher a hora, que lhe chegou de modo inesperado, nem ainda dispõe dos meios e de quadros qualificados a fim de converter uma cidadela de quatrocentos mil habitantes, há décadas vivendo sob uma ordem imposta por senhores de guerra, em um espaço citadino.

Em sua concepção original, a política das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPS) previa a sua imposição primeiramente nas comunidades faveladas de baixo risco, recolhendo experiências e conquistando o apoio da população, daí passando a agir nas mais problemáticas. Nessa escala, certamente o complexo do Alemão deveria ser uma das últimas, se não a última, inclusive pela natureza da sua geografia, a ser objeto de uma UPP. A reação dos narcotraficantes, sob as ordens de núcleos com base nesse complexo de favelas, que desencadearam uma série de ações terroristas em alvos indiscriminados da cidade, obrigou a mudança de cálculo: tornou-se imperativo começar pelo fim.

Concluída com sucesso, a operação político-militar de ocupação daquele território, a sociedade teve diante de si, nas telas da TV, a exposição nua de uma cidade de médio porte que vivia em um mundo paralelo à margem do Estado e de suas leis e serviços públicos, e que tinha aprendido a construir uma rotina em meio a um campo de guerra e às ameaças das balas perdidas. Nas imagens repetidas à exaustão, além das tropelias da incursão policial-militar, viam-se os movimentos das pessoas em suas fainas cotidianas, com suas sacolas de compras, em suas idas e vindas para os lugares do seu emprego, visíveis, em toda parte, os sinais de uma intensa vida mercantil.

Mas, em meio a tantas indicações de uma natureza bem assentada da vida privada, nada havia ali que denotasse a presença do público e do cidadão. Ali estavam indivíduos treinados a buscar suas condições de sobrevivência como seres especializados a viver na bolha da esfera privada, uma das quais, essencial, era a própria ocupação do solo sobre o qual tinham construído suas habitações, principal refúgio para evitar a lei da selva imperante no território.

Ali estava, em uma das principais cidades do país, um espaço em que o exercício da autonomia deveria se confinar à dimensão privada da vida, uma vez que, no mundo da rua, o que cada qual deveria esperar era o estatuto da heteronomia imposta pelos comandos narcotraficantes ou pelo aparelho policial, não sem frequência ocupado por membros da sua banda podre. Sem um lugar institucionalizado para uma fala livre, a comunidade, tal como se constatou, não teve como apresentar qualquer narrativa que exprimisse a situação de terror sob a qual vivia, e nem contou, embora a maioria adulta da população seja eleitoral e faça parte do mundo do trabalho, com uma solidariedade ativa dos partidos e dos sindicatos.

A simples libertação do território é, como se sabe, apenas um primeiro passo. A população inerme, em estado de anomia cívica, destituída de auto-organização, sem vínculos orgânicos com o mundo externo, continua uma presa fácil quer para a reconstituição, em novo formato, dos negócios dos narcotraficantes, quer para sua subordinação a organizações de milícias. Confiar unicamente na intervenção policial-militar, mesmo que permanente, não deve fazer parte das cogitações dos tomadores de decisão quanto ao objeto do complexo do Alemão, alguns com a rica experiência do Haiti. A tópica republicana sai dos livros, e se impõe como um remédio heroico, mesmo para aqueles que sempre a trataram com desdém em nome de nomeadas urgências substantivas.

O paradoxo da situação está no fato de que essa mudança de larga envergadura nas relações do Estado e dos seus governantes com os setores mais sensíveis das classes subalternas - a imensa população que habita as favelas -, se apresente como uma resposta à ação do narcotráfico, que contém, registre-se de passagem, um evidente elemento de rebelião juvenil quanto a um sistema de ordem excludente e discriminador. Se, ali, agora, a república conta com uma oportunidade para criar raiz, deve-se, de algum modo, a eles, pois foi a partir do domínio terrificante que impuseram nos territórios que ocupam, que a demanda por ela se tornou uma questão geral, socialmente necessária, quando ficaram patentes os efeitos perversos de deixar a tantos à margem da cidade, dos seus valores, direitos e oportunidades de vida.

A tarefa é de perder o fôlego e exige o envolvimento de todos, da universidade, dos intelectuais, dos especialistas, dos partidos, sindicatos, associações empresariais, além das autoridades governamentais envolvidas, que, diante da gravidade da situação, não podem mais agir segundo sua própria discrição. Estão maduras as condições para a constituição de um fórum permanente da sociedade civil, agregando um conjunto de inúmeras atividades já existentes a fim de concertar iniciativas comuns.

A república nos veio de cima, sob forma oligárquica, e a conhecemos, pelas longas décadas do processo de modernização, como autocrática. A Carta de 1988 nos apresentou às instituições de uma república democrática, mas, como sabido, ela ainda não é uma ideia popular, pois, contraditório que seja, é essa a possibilidade que se abre com o complexo do Alemão, onde estão dadas as condições para que se rompa com o sertão sem lei rumo à cidade e para que se introduza animação republicana a partir de baixo.

Desta feita, como se vê, a coluna mudou de estilo - foi mais normativa do que analítica.

Deve ser o Natal e a passagem de ano, tempos propícios aos bons augúrios.


Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional. Escreve às segundas-feiras

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