FOLHA DE S. PAULO
Há mais de um século, um telegrama diplomático quase levou a Argentina e o Brasil às vias de fato
Um telegrama diplomático brasileiro interceptado e violado por agentes do governo argentino provocou, há pouco mais de um século, grave crise que gerou clima de quase guerra entre os dois países.
Muito mais sério que o do WikiLeaks tanto pela autoria oficial da violação como das potenciais consequências, o episódio se passou na segunda metade de 1908.Seus personagens foram o barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores, e Estanislao Zeballos, recém-demissionário da Chancelaria argentina que vinha de ocupar pela terceira e última vez.
Durante mais de 30 anos, os dois rivais se haviam digladiado como os heróis da novela "Os Duelistas", de Conrad ou os pitorescos quadrinhos da série "Spy vs. Spy".
O primeiro embate ocorreu em 1875, quando um enviado argentino se retirou do Rio de Janeiro sem despedir-se do imperador em meio a outra crise entre os dois países.O então jornalista e futuro barão escreveu que não se tratava de afronta ao Brasil, apenas de uma "gaucherie", isto é, uma deselegância. Confundindo a expressão com "gauchada", Zeballos revidou que isso era uma "macacada de má lei", aduzindo com racismo: "É melhor ser gaúcho do que macaco"...
Em 1895, os dois voltariam a se confrontar em Washington como adversários na questão limítrofe de Palmas, submetida à arbitragem do presidente Cleveland, dos EUA, e ganha de modo cabal pelo Brasil.
O ato final se daria em 1908, ano marcado pelos temores argentinos diante do programa de rearmamento naval brasileiro.
Zeballos, ainda ministro, havia interceptado e mandado decifrar o telegrama nº 9 enviado pelo Itamaraty à missão do Brasil no Chile, via Porto Alegre e Buenos Aires.
Pela versão argentina, Rio Branco estaria intrigando os países sul-americanos contra a Argentina, acusada de desígnios sinistros sobre o Paraguai, o Uruguai, a Bolívia e o Rio Grande do Sul.
A mensagem conteria até ofensas gratuitas contra o caráter "volúvel" dos argentinos, sua falta de estabilidade e comentário hoje irônico, pois dirigido com frequência aos nossos atuais dirigentes.
O de que "a ambição de ser protagonista os desmoraliza, sacrificando o mérito, com o descrédito de seus estadistas e prejuízos derivados da falta de seriedade que os caracteriza"...
Desafiado a submeter o telegrama a uma corte de plenipotenciários, o Barão contra-atacou de modo fulminante: publicou o texto cifrado, a tradução falsa e a autêntica, totalmente diversa, bem como o código diplomático brasileiro, que se tornou inutilizável.
Liquidou assim a questão com triunfo esmagador.
Esse não foi o único antecedente do WikiLeaks em termos de correspondência diplomática americana relativa ao Brasil. Convém lembrar também os arquivos secretos do presidente Lyndon Johnson, reveladores, em meados dos anos 1970, do grau de envolvimento de Washington com o golpe de 1964 por meio da Operação "Brother Sam".
Rio Branco teria lições a ensinar e não só aos americanos. Refratário a comentários ofensivos gratuitos a outros países, compreendia que o mais impenetrável dos códigos tem como limite a fragilidade dos seres humanos, sobretudo em tempos de crise do consenso interno sobre política exterior.
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