domingo, 26 de dezembro de 2010

"O capitalismo sem controle é perigoso"

Joseph Stiglitz:
Época


Para o Nobel de Economia de 2001, o melhor sistema é o da Escandinávia. E o Brasil deveria se preocupar menos com a inflação e com o tamanho do Estado
JOSÉ FUCS

O economista americano Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia em 2001 e ex-comandante do departamento econômico do Banco Mundial, ganhou destaque com a explosão da crise global, em setembro de 2008. De figura marginalizada, em razão de suas críticas ao “fundamentalismo do livre mercado”, ele passou a ser ouvido com atenção até por financistas que torciam o nariz para suas ideias. No livro O mundo em queda livre, recém-lançado no Brasil (editora Companhia das Letras, R$ 66), Stiglitz diz que a crença na eficiência dos mercados morreu com a crise. Para ele, o melhor sistema econômico é o dos países escandinavos – a carga tributária é elevada, mas o governo oferece “boas políticas” de proteção social. Para horror dos economistas mais ortodoxos, Stiglitz afirma que o Brasil deveria se preocupar menos com a inflação e o tamanho do Estado. “A inflação é importante, mas é apenas uma variável.”

ENTREVISTA - JOSEPH STIGLITZ

QUEM É
Economista americano, de 67 anos, é professor da Universidade Colúmbia, EUA. Foi economista-chefe do Banco Mundial de 1997 a 2000. Ganhou o Nobel de Economia em 2001

ONDE ESTUDOU
Formou-se em economia no Amherst College, em 1963. Fez o doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT), em 1967. Também foi pesquisador na Universidade de Cambridge, Inglaterra, no fim dos anos 60

O QUE PUBLICOU
O mundo em queda livre (Ed. Cia. das Letras, 2010), Livre mercado para todos (Ed. Campus Elsevier, 2006) e A globalização e seus malefícios (Ed. Futura, 2002), entre outros
ÉPOCA – Em sua visão, passados dois anos da quebra do Banco Lehman Brothers, qual foi o impacto da crise global sobre o capitalismo? 
Joseph Stiglitz – Há duas formas de analisar essa questão. A primeira é que o desempenho da economia nos países desenvolvidos tem sido desanimador. Nos Estados Unidos e na Europa, o baixo crescimento, o alto desemprego e a subutilização de capacidade de produção têm sido terríveis. Mas igualmente importante é a mudança de percepção sobre o sistema capitalista. Antes da crise, as pessoas acreditavam que os mercados eram eficientes, que a desigualdade de renda poderia ser indesejável, mas era justificável pelos incentivos que oferecia ao crescimento econômico. Agora se percebeu que os mercados não são eficientes, não são estáveis, e que os altos bônus recebidos pelos executivos dos bancos representavam um prêmio às perdas recordes que aconteceram. As pessoas podem até entender que alguém inovador, que cria riqueza, seja premiado. Mas eles foram premiados por destruir riqueza – e isso minou a fé no sistema de mercado.

ÉPOCA – De que forma essa percepção está afetando o sistema hoje? 
Stiglitz – Nos EUA, embora os mercados tenham fracassado, há uma forte percepção de que o governo também falhou e deu dinheiro aos bancos que provocaram o problema. O resultado é que há uma desilusão com ambos, o mercado e o governo. Isso explica o fortalecimento do movimento Tea Party, que pode ser descrito como um movimento anti-establishment. Até acho que o governo (do presidente Barack) Obama ajudou a economia. Fez bem mais que o governo Bush. Sem os pacotes de estímulo, o desemprego estaria em 12% ou 13% (da população ativa), e não nos 9,8% em que está hoje. Mas, infelizmente, não foi o bastante. Hoje, um em cada seis americanos que buscam um emprego formal não consegue encontrar. As execuções de hipotecas estão subindo, e não caindo como se esperava. A percepção é que o governo gastou muito dinheiro, deu muito dinheiro aos bancos e não resolveu o problema. A reação é de revolta e rejeição.

ÉPOCA – Essa reação também está acontecendo em outros países? 
Stiglitz – Acho que o efeito na Europa e nos mercados emergentes foi diferente. Na Europa, a percepção é que o governo ajudou a economia, e o modelo de proteção social europeu ajudou a Europa a responder à crise. Não há um movimento antigoverno. Mas eles pensam que os pacotes de salvamento da economia tiveram um impacto tão forte nas contas públicas que agora podem ter de cortar gastos. Isso vai impedir a retomada e aumentar o risco de um novo mergulho da economia. Essa reação, de defesa de uma austeridade inapropriada para as circunstâncias, é diferente da que houve nos EUA, mas é quase igualmente irracional. O interessante é que, na Ásia, eles também adotaram políticas de estímulo keynesianas – e funcionou. É a única parte do mundo que está indo bem. A América Latina também. Mas parte do sucesso da América Latina é porque há melhor regulação dos bancos e políticas sociais melhores. E parte porque a região é grande exportadora de commodities e foi beneficiada pela alta dos preços internacionais, estimulada pelo forte crescimento da Ásia.

"Nos países escandinavos, a carga tributária chega a quase 50% do PIB, mas eles têm a melhor qualidade de vida do mundo"

 ÉPOCA – O Brasil foi um dos países menos afetados pela crise. Além da alta das commodities, o governo cortou impostos e aumentou os gastos públicos. Mas, agora, muitos economistas estão preocupados com o superaquecimento da economia e passaram a defender uma política fiscal mais austera. Eles estão certos? 
Stiglitz – Primeiro, é preciso dizer que o Brasil está numa situação completamente diferente dos EUA e da Europa porque o crescimento está forte. O segundo ponto é que o debate não deveria ser sobre cortar ou não os gastos do governo. Essa questão inclui a discussão sobre o tamanho adequado do Estado – e isso não tem nada a ver com o superaquecimento da economia. A decisão de cortar ou não os gastos públicos depende da visão que você tem sobre o retorno dos gastos e dos investimentos governamentais. No caso do Brasil, o país ainda precisa investir muito em educação e tecnologia. É preciso, portanto, fazer uma análise mais detalhada sobre o que vai ser cortado e sobre o custo de oportunidade dos cortes.

ÉPOCA – A maior preocupação no Brasil é com o impacto dos gastos públicos na inflação. Isso não é importante? 
Stiglitz – Em minha opinião, o governo não deve se concentrar excessivamente na questão da inflação. Dada a história da inflação na América Latina, é difícil não se preocupar com a inflação. Mas, em alguns países, como nos EUA, há muita discussão sobre o fato de a política monetária do Banco Central ter como alvo a inflação. Ao se concentrar na inflação, eles deixaram de lado coisas mais importantes, como a estrutura do sistema financeiro. A lição é que a inflação é importante, mas é apenas uma variavel. Se a inflação tiver componentes importados, por causa do aumento global do preço dos alimentos, a desaceleração da economia não resolverá o problema porque os preços são determinados pelo mercado internacional.

ÉPOCA – Os economistas dizem que o Brasil não pode crescer mais que 4,5% ou 5% ao ano sem aumento da inflação... 
Stiglitz – Acho que esse é um jeito errado de ver as coisas. Nas economias mais dinâmicas, em que há espaço para a inovação, como no caso do Brasil, não há razão para que não se possa crescer de forma mais rápida. A China está crescendo 9%, 10%, 11%, 12% ao ano. A Índia está crescendo 9%. Antes de 1980, o Brasil crescia 5,7%, em média, por ano. Para mim, se você aumentar a produtividade, por meio da educação, da tecnologia, você poderá crescer mais rapidamente, sem aumentar a inflação. Na China, durante muitos anos, houve um debate parecido. Sempre havia alguém dizendo que o governo tinha de desacelerar o crescimento. Mas o governo chinês conseguiu estabilizar o crescimento em um patamar elevado, e a inflação não subiu. O pessoal gritou “fogo” muitas vezes quando não havia fogo nenhum. Se eles tivessem ouvido quem estava com medo do superaquecimento, a China teria hoje uma economia 10% ou 20% menor do que tem.

ÉPOCA – O maior argumento para defender o corte de gastos é que o governo contratou milhares de funcionários públicos, em vez de investir em educação, infraestrutura... 
Stiglitz – Desde o governo (do presidente Fernando Henrique) Cardoso, o Brasil se tornou muito respeitado por seus programas de proteção social. Teve grandes progressos na educação. Certamente, os retornos de alguns gastos têm sido muito positivos. Em nenhuma economia existe a eficiência absoluta. E nunca nenhum governo desperdiçou tanto dinheiro quanto o sistema financeiro americano. Nenhum governo desperdiça tanto dinheiro como o sistema privado de saúde americano. Os EUA têm desperdícios enormes no setor privado de saúde. Muito mais que no setor público.

ÉPOCA – Em geral, acredita-se que o setor privado é sempre mais eficiente... 
Stiglitz – Algumas vezes, é. Outras, é muito ineficiente. Nos EUA, a área mais eficiente e mais respeitada da economia são as universidades – e a maioria não é voltada para o lucro. As escolas com fins lucrativos são terríveis. Os casos mais bem-sucedidos são fundações. Elas não são públicas. Pertencem ao Terceiro Setor. Não têm fins lucrativos.

ÉPOCA – O senhor acredita ser possível aumentar a participação do Estado na economia sem desestimular os investimentos privados e travar o crescimento? 
Stiglitz – Se isso não for feito do jeito certo, você poderá ter um governo enxuto que atrapalha a economia. Não é o tamanho que importa, é o que o governo faz. Se o governo cobra impostos, mas gasta o dinheiro em educação e investimentos, torna a economia mais produtiva e estimula o crescimento. Nos EUA, a carga tributária é bem menor que na Suécia. Mas os americanos gastam 17% do PIB em saúde porque o sistema privado é muito ineficiente. Se houvesse um sistema público de saúde, seria melhor. Outro exemplo: um dos grandes serviços que o governo oferece nos EUA é a aposentadoria. Há também os planos privados de aposentadoria. A pergunta é: qual é o sistema mais eficiente? O sistema público de aposentadoria americano é muito mais eficiente que qualquer programa privado.

ÉPOCA – No Brasil, a carga tributária é de quase 40% do PIB. O senhor não acha que o peso do governo na vida dos indivíduos e das empresas já é excessivo? 
Stiglitz – A questão não é tanto o nível da carga tributária quanto sua estrutura. Nas economias mais dinâmicas, como a da Escandinávia (Dinamarca, Suécia, Finlândia e Noruega), a carga tributária é próxima de 50% do PIB – e lá eles têm a melhor qualidade de vida do mundo. Eles dizem que isso é possível porque o governo é forte e oferece boas políticas de proteção social e uma educação de qualidade. Então, a resposta depende das circunstâncias de cada país.

"No Brasil, o debate não deveria ser sobre cortar ou não gastos públicos. Isso não tem nada a ver com o superaquecimento da economia"

ÉPOCA – Considerando isso, o senhor acha que, no futuro, o sistema capitalista será muito diferente do que antes da crise? 
Stiglitz – Sim. Mais uma vez, gostaria de responder à pergunta sob o ponto de vista de diferentes países. Acredito que, nos mercados emergentes, o debate sobre o Consenso de Washington (conjunto de medidas liberais para promover o ajuste de economias em dificuldades) morreu. Ninguém mais o leva a sério. Daqui para a frente, os países em desenvolvimento terão uma visão muito mais balanceada do papel do governo na economia. Nos EUA e na Europa, o debate é um pouco diferente. Há uma percepção de que o capitalismo sem controle é perigoso e é preciso regular os bancos. Há muita discussão a respeito da criação de um imposto sobre transações financeiras. Antes da crise na Europa, muita gente pensava que eles deveriam seguir o exemplo americano, mais dinâmico. Agora, você não escuta mais isso.

ÉPOCA – Há algum modelo a seguir? 
Stiglitz – Hoje, na Índia, na Europa, em todo lugar, o que mais se fala é do modelo escandinavo. Há um reconhecimento de que é um modelo que funcionou e provoca inveja no resto do mundo. A questão é: será que ele vai funcionar para a Índia, o Brasil e outros países? É claro que terá de ser adaptado, assumir formas diferentes, mas é provável que sim.

ÉPOCA – O que chama a atenção é que eles conseguiram isso com uma economia aberta, sem restrições à competição de produtos estrangeiros... 
Stiglitz – Eles argumentam que é porque têm um bom sistema de proteção social que podem obter o apoio político para promover a abertura econômica. E é graças aos altos tributos que eles podem oferecer uma educação de qualidade e desenvolver uma tecnologia que lhes permita responder com confiança à competição estrangeira.

ÉPOCA – Se o senhor tivesse de dar um conselho para o Brasil, hoje, qual seria? 
Stiglitz – O Brasil fez muitas coisas certas. Agora, se quiser continuar a crescer, terá de baixar os juros reais (acima da inflação), que estão entre os mais altos do mundo. Não dá para ter um setor privado vibrante com juros reais tão altos. Além disso, é preciso ampliar os investimentos em educação. A política industrial, com o apoio do BNDES, também é importante, assim como as políticas de proteção social. Há 20 anos, quando começou a desenvolver suas políticas sociais, o Brasil tinha altos índices de desigualdade. Hoje, melhorou bastante, mas ainda há muito a ser feito. Não dá para deixar isso para trás. Esse é um longo caminho, mas é preciso persistir nele para alcançar os resultados desejados.
.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

GEOMAPS


celulares

ClustMaps