DANIEL PIZA
O ESTADO DE SÃO PAULO
Uma das coisas curiosas nesses oito anos de governo Lula foi a ginástica verbal que aqueles que se dizem "de esquerda", que durante duas décadas sonharam com a chegada da classe operária ao Planalto, fazem para justificar os elogios a um tipo de gestão que tanto condenavam. Lula manteve o modelo econômico do antecessor, que antes classificava erroneamente de "neoliberal", em todos os aspectos: meta de inflação, câmbio livre, reservas financeiras, estímulos ao consumo, juros relativos entre os maiores do mundo, busca de graus melhores nas agências de risco; nenhuma privatização cancelada ou sequer investigada, e até alguns bancos estatais vendidos. Estatizações? Poucas. Reforma agrária? Longe disso. Protecionismo maior? Não, mesmo com aumento do déficit externo. Transferência de renda? Os ricos nunca estiveram tão ricos.
Ao contrário: o governo Lula aprimorou esse modelo, levando as reservas ao exagero de US$ 300 bilhões, investindo dinheiro do BNDES em grandes empresas ou setores que geram emprego, saldando dívidas com o FMI, etc. Também aprimorou o aspecto social desse modelo, não só com verbas assistenciais (que representam pouco no orçamento anual, R$ 12 bilhões, e muito no retorno simbólico), mas sobretudo com a ampliação do crédito (a política mais determinante de seus mandatos, mais que o Bolsa Família), sem perder controle da dívida interna. A pergunta que ninguém se faz: será que as alternativas a Lula nas duas eleições, Serra e Alckmin, teriam tido o mesmo sucesso econômico e social? Considerando os bons ventos para o mundo emergente, é possível que sim. Mas não sei se teriam tido a mesma percepção para bolsas e créditos - e tenho certeza de que saberiam bem menos capitalizá-la politicamente.
Outra curiosidade dos anos Lula foi o tipo de crítica pessoal, raivosa e iludida que ele gerou em pessoas que, supostamente, eram favoráveis a essa política econômica, de agradar ao mercado e ampliar a classe média. Se eram favoráveis, por que não souberam reconhecer seu efeito eleitoral? O duplo mandato de Lula, que também era contra a reeleição no século passado, não teve um único traço de socialismo ou estatismo. Não teve nem mesmo de social-democracia, pois esta pressupõe o acesso universal e gratuito a educação e saúde. Suspeito que a gestão tucana de Lula inflou o preconceito dos que antes bajulavam tanto o governo FHC porque, afinal, o "guia" petista os deixou sem nenhuma bandeira própria. E a única saída que viram foi assumir sua retórica "de direita", com laivos religiosos e tudo, que os deixou cegos para a esperteza política de Lula, como a de recusar um terceiro mandato.
Lula não governou nem à esquerda nem à direita, muito pelo contrário... e com isso confundiu tanto seus áulicos quanto seus críticos. O PIB foi o que menos cresceu em média entre os emergentes (4%), mas cresceu mais que no período anterior (2,5%) - por isso ele não parou de comparar o tempo todo - e saiu da crise de 2009 com um índice acima de 7% em 2010. O desemprego medido pelo IBGE, ainda que reste tanta informalidade e a renda tenha apenas recuperado níveis de 15 anos atrás, termina abaixo de 6%, o que é quase pleno emprego. Os numerosos escândalos de corrupção, por mais que ele tenha construído sua carreira com o mesmo discurso udenista ("São 300 picaretas com anel de doutor") que hoje seus defensores acusam na oposição, foram rechaçados maquiavelicamente, pois o povo passou a dizer que, se são mesmo todos iguais, é melhor continuar com um igual que está dando certo.
E ainda querem entender o porquê dos 83% de popularidade? Não vejo fenômeno mais fácil de interpretar. O despreparo e a demagogia de Lula, que em alguns momentos ultrapassaram o vergonhoso, não impediram que a sensação de bem-estar aumentasse como aumentou. O que sempre disseram de um eventual governo Lula? Que reverteria todos os avanços, que faria do Brasil uma Venezuela, que expulsaria empresários e causaria guerra civil... Como nada disso aconteceu, tudo que houve de positivo reverteu para ele; o que houve de negativo foi parar na conta de todos ("O país tem a classe política que merece"). Por mais que as eleições em todos os níveis tenham mostrado que a popularidade do presidente não significa uma aceitação de tudo que fez, é preciso ser muito ingênuo ou orgulhoso para achar que o povo ia dissociar a melhora de sua vida e a responsabilidade do presidente nela.
Isso tudo, no entanto, não significa que seu governo tenha sido tão bom quanto as pesquisas dizem. Sempre estive entre os 15% e 30% que o consideraram "regular", nota 6, ao longo dos oito anos. Por quê? Eis o ponto: se Lula fez bem em dar continuidade a muitas conquistas do governo anterior (que sofreu para obtê-las por causa de uma oposição que o sucessor jamais experimentou), também cometeu muitos erros semelhantes, em especial o velho vício nacional de achar que centro é comodismo, que conciliação é conchavo, que exigente é chato. Nenhuma reforma importante foi feita, nenhuma transformação séria. O mecanismo pelo qual o poder é exercido segue sendo o mesmo arranjo de oligarquias, que concede um lento avanço do perfil social em troca do uso desregrado do dinheiro público. A carga tributária continuou subindo no mesmo ritmo, em direção aos padrões escandinavos, sem a respectiva devolução de benefícios coletivos. Metade da população não tem acesso a esgoto!
Analise friamente, aliás, cada um dos ministérios, ou melhor, os mais relevantes (já que Dilma Rousseff teve de lotear nada menos que 37 ministros pela Esplanada). Na educação, houve aumento quase inercial da abrangência; no caso das universidades, o ProUni ajudou, embora nada mais seja que dar dinheiro do contribuinte para um grupo crescente de empresas particulares; mas a qualidade não deu nem parte do salto que deveria e poderia dar, como fizeram os sul-coreanos. Na saúde, a situação da rede pública é vexaminosa, seguida de perto nas mesmas pesquisas pela questão da segurança. A Justiça continua a ser lenta e antidemocrática; quem tem pistolão e dá carteirada sempre se safa, nem que seja com prisão domiciliar. Mesmo na economia, os impostos e as importações asfixiam a produção nacional; e, ainda que o consumo esteja tão aquecido, o custo das mercadorias - do livro ao iPad, do feijão ao carro - é dos mais altos do mundo. Há pouca inovação, enquanto os chineses arrebatam todos os prêmios, da matemática à música, e fazem vales do silício.
O governo Lula foi pródigo em bravatas de cunho populista, em bazófias da ignorância, em tentativas de intervencionismo estatal e afrontas à liberdade de expressão, em casos de corrupção que em países desenvolvidos jamais seriam tolerados (imagine o de Erenice Guerra na Inglaterra ou no Japão), em momentos tristemente folclóricos (de "Dá dois paus pra eu" a "Sai daí, Zé", das violações de sigilo de caseiro e colega aos abraços em ditadores no Irã e em Cuba), em péssimo gerenciamento de sistemas como o aeroviário e o portuário. Também foi esperto ao embarcar com vigor na onda dos emergentes, vendendo commodities e atraindo investimentos, e a induzir o mercado interno, ainda que apenas pela via do consumo e dos gastos, e conseguiu resultados de que até Lula duvidava, provando que o capitalismo é o sistema que melhor combate a pobreza. Dizer que o saldo é bom é supor que uma coisa não poderia vir sem a outra. Espero que o governo Dilma ao menos respeite mais a coisa pública.
Por que não me ufano. Tenho muitas dúvidas sobre o caso WikiLeaks, o site que vazou milhares de textos confidenciais da diplomacia americana, menos a de que a liberdade de expressão deva ser coibida. A prisão do criador do site, Julian Assange, acusado de crimes sexuais, aconteceu num momento que sugere intimidação, como disse a ONU; empresas e governos o declararam "persona non grata". Sim, é verdade que a maioria dos despachos não passa de mais uma demonstração da futilidade e leviandade da rotina diplomática, e que em alguns casos faltou a responsabilidade do bom jornalismo de checar fontes e contrapor versões, além da revelação de alguns dados que poderiam ser estratégicos. Sim, é assustador ver como a internet é insegura, que não há privacidade que resista. Mas os documentos são reais, as informações podem ser pertinentes e o caso poderia abrir caminho para mais transparência dos poderes.
Enquanto isso, no Brasil, o governo diz que a proposta de regulação dos meios de comunicação não tem nada a ver com censura e que ela é comum em outros países. Nananinanão. Nos outros países, há entidades que zelam pelas regras do setor, não órgãos estatais munidos de critérios vagos como "contrapartida social" e "serviço público". A proposta de Franklin Martins, aquele que dizia todas as noites na TV Globo que o mensalão não existiu, tem pontos positivos, como a limitação da propriedade de mídia por políticos, o que o senado do cacique Sarney jamais deixaria passar. Jornal regional, no Brasil, é muitas vezes o panfleto de alguma oligarquia política. Mas a compulsão censora da Justiça, a criação de "conselhos" estaduais para cercear a liberdade de imprensa e a falta de apoio democrático ao projeto deveriam engavetá-lo.
Inté. Pausa para retomar o fôlego: esta coluna volta no dia 23/1. Feliz 2011 para todos.
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