Míriam Leitão
O GLOBO
No primeiro mês, a presidente Dilma descansou o Brasil da intensidade torrencial do ex-presidente Lula. Falou como chefe do executivo e não como chefe de propaganda do governo em eterna campanha. Deu o tom certo - grave, solidário e objetivo - na visita ao pior desastre humano vivido no país. Errou nas relações políticas, assustou na decisão sobre Belo Monte.
Neste primeiro mês, deu para sentir mais uma vez a grande vantagem da regra democrática da alternância do poder. Mesmo quando é o mesmo grupo político, os estilos são diferentes e a mudança é sempre encantadora, ainda que seja na continuidade.
O saldo é sem dúvida positivo neste alvorecer do governo novo, mas há pontos de dúvida e preocupação em erros e omissões. Dilma sabe - e todos sabemos - que o Brasil se governa em coalizão e os partidos que ela tem são estes, são estes os líderes partidários. Talvez ela tenha errado na avaliação do poder de alguns. O ex-presidente José Sarney não é tão decisivo no controle da base partidária do PMDB para que mereça as donatarias que recebeu. Nas vésperas de eventos internacionais importantes, num país que tem um déficit de US$10 bilhões em turismo, a escolha de Pedro Novaes para atender a um coronel no seu ocaso é uma insensatez. A pasta do Turismo já é excessiva, mas ele teve ainda reafirmado o poder sobre o ministro das Minas e Energia, que sempre foi seu preposto. De Furnas, entregue às mesmas facções do PMDB, jamais se poderá esperar algo diferente das tenebrosas transações que o país já viu e teme a repetição.
No Itamaraty, começa a se respirar outro ar. O "celsismo" fraturou a Casa de Rio Branco de forma dolorosa. O Brasil perdeu bons talentos nos quais investiu, no momento mesmo em que estava para colher o melhor da sua maturidade. Foram muitos os que no ápice da carreira, na qual eles e o país investiram anos e esforços, foram deslocados, por mesquinharia, para funções que os subutilizaram. Se cada um dos talentos diplomáticos encostados na burocracia viveu seu drama pessoal, o maior prejudicado foi o próprio Brasil, que perdeu força e talento. Caberá a Antonio Patriota o reatamento das relações do Itamaraty com ele mesmo; caberá a ele também a correção de rumos estranhos à nossa tradição, como a cumplicidade com atentados aos direitos humanos, e a distorção da diplomacia bicéfala. Todo presidente tem assessor internacional; mas é esdrúxulo haver dois chanceleres.
No caso dos passaportes especiais, a ordem do governo foi clara e correta: rever toda a lista dos que receberam esse direito, e limitar essa concessão a quem está - e apenas no período em que está - a serviço do país. O benefício parece pequeno e é emblemático num país onde a ideia de que há fidalgos é tão antiga; onde o "sabe com quem está falando" é um cacoete tão arraigado. Uma limpeza na lista dos superpassaportes melhora o país.
A relação com a maioria das empresas de comunicação ficou muito tensa ao fim do governo Lula, porque o Planalto fez uma confusão entre o poder concedente e a vontade de controlar conteúdo. A primeira ideia que saiu do Ministério das Comunicações no atual governo sobre regulação da mídia era de uma estultice sem paralelo: proibir as empresas de terem ao mesmo tempo jornal ou televisão e rádio na mesma cidade. O primeiro erro da ideia é o de que jornal é concessão; nunca foi. TV e rádio são concessões. Sobre esses setores o governo tem o poder concedente e regulador; desde que não o use para censurar. O segundo erro foi pensar em veículos de comunicação como se fossem prisioneiros do espaço físico na era da internet. Felizmente, o ministro Paulo Bernardo foi socorrido pela lógica e passou a expressar ideias mais contemporâneas nessa delicada área, em que a tecnologia é fonte de mudança constante e em que a liberdade é valor permanente.
A presidente Dilma pode estar cometendo um erro político perigoso. Não ocupar a pauta do Congresso com propostas do Executivo significa ficar refém da pauta do Congresso e aprisionar o governo em batalhas laterais. Pelo que circulou nestes primeiros 30 dias, Dilma teme o desgaste de propor grandes reformas; quer mudanças incrementais. A falta de ambição inicial pode deixar a presidente ao sabor das escaramuças determinadas pelas brigas entre grupos de interesse de sua fragmentada base parlamentar.
Nesse começo de ano, de governo e de legislatura, dois tristes fatos não têm a ver com a presidente. São defeitos anteriores. Um é o escândalo das aposentadorias para ex-governadores. Acintosas, inconstitucionais. Há fatos até exóticos como o do governador de dez dias com ganho vitalício, mas o pior do evento é verificar a coalizão suprapartidária. Bons e maus políticos, integrantes de partidos do governo e da oposição, parlamentares apontados como exemplos éticos e velhas aves de rapina, todos foram igualados no mesmo usufruto de um privilégio inaceitável. O único alívio vem dos que não pediram a vantagem. O segundo fato é a quarta presidência do Senado para a mesma pessoa. Um seguidor do twitter escreveu tudo: "parece notícia velha". José Sarney comandar o Senado pela quarta vez ofende a democracia, revoga esperanças, convoca o desânimo cívico.
Um fato triste desse começo de governo tem a ver direta e integralmente com a presidente Dilma. Ela está inteiramente convencida de que Belo Monte é um projeto bom. E, no entanto, persistem dúvidas ambientais, climáticas, geológicas, hidrológicas, processuais, financeiras e fiscais no projeto. O caminho de fazer Belo Monte pela força do fato consumado e das licenças arrancadas ao arrepio da lei não fará bem à biografia da presidente e vai marcar seu governo.
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