Xico Graziano
O Estado de S.Paulo
Muitos querem descobrir o culpado pelas enchentes. A pretensão expressa um raciocínio simplista, próprio da tradição cristã ocidental. No dualismo religioso, Deus enfrenta o diabo, o bem contra o mal. Será o temporal uma encrenca do demônio?
Vamos com calma. A chuva, na agricultura, é bênção divina. Na sua busca se rezam terços e fazem promessas. Inexiste na roça pior desgraça que a seca. As sementes esturricam no solo sem germinar e, se nascidas em pé, secam de dar dó. Faltar água na florada esteriliza as flores, aniquila a colheita. Sinônimo da fome.
Gente do campo incomoda-se ao escutar o homem do tempo, urbanoide, dizendo que vai fazer tempo ruim. Ora, nuvens escuras podem estragar a viagem para o litoral, acabar com casamento ao ar livre, molhar a churrasqueira. A lavoura, porém, agradece quando São Pedro lava o céu. Tempo bom!
Temporal é diferente. Se o terreno estiver exposto e, pior, lavrado, erosões se formam com a força das enxurradas. Ventos fortes quebram as plantas e terríveis voçorocas formam cicatrizes no solo. Estrago na roça.
Em meados do século passado, a conservação do solo tornou-se o maior desafio da agricultura brasileira. Estudos mostravam queda na produtividade agrícola, perda de sementes, fragilidade ante as pragas, custos crescentes. O cenário andava desolador em algumas regiões. Combater a erosão virou uma obsessão nacional.
O Incra promovia um concurso e premiava os produtores rurais conservacionistas. Lembro-me, no final dos anos de 1960, de a Fazenda Santana do Baguaçu, tocada em Pirassununga (SP) por meu tio, o agrônomo José Gomes da Silva, receber um daqueles valiosos certificados do governo. Plantio em curvas de nível, com terraços transversais à declividade do terreno, era a melhor receita conhecida contra o mal.
Funcionava, mas não resolvia totalmente o problema. Chuvas mais intensas "estouravam" as curvas de nível, piorando o dano. Foram necessários 30 anos para a agronomia desenvolver nova técnica, capaz de garantir a fertilidade agrícola nos países tropicais: o plantio direto. Uma maravilha.
Nesse sistema, o solo não é arado nem gradeado para receber as sementes. Máquinas modernas preparam apenas o sulco de plantio sem remexer no terreno todo, que permanece coberto pela palhada seca. Sem plantio direto os solos arenosos do Cerrado estariam destruídos pela erosão.
Nesse processo, os agricultores descobriram que de nada adianta amaldiçoar a tromba d"água. Sabendo-a inevitável, há que prevenir o seu furor, contrapondo-a com boa agricultura. Aprenderam também que, às vezes, o fenômeno da erosão ocorre mesmo em áreas nativas, como o provam as grotas. Existem catástrofes naturais.
Pense agora na cidade. Nessa mesma época da luta contra a erosão no campo, o fortíssimo êxodo rural invadiu os municípios. Durante décadas o território urbano foi ocupado descontroladamente, moradias roubando as várzeas dos rios. Populações tomaram encostas, asfalto impermeabilizou o solo. Mais tarde, o lixo entupiu bueiros.
Passava o tempo, caoticamente cresciam as metrópoles. Nada segurava o ímpeto do chamado progresso. A expansão urbana nascia no ventre da explosão populacional, carregada de promessas e sonhos, miséria e suor. Habitações precárias ergueram-se alhures, zero de engenharia, mãos calejadas transformadas em pedreiros de araque. Deus nos acuda.
Quem tem culpa pela tragédia da chuva? Todo mundo, e ninguém. A sociedade inteira paga agora pelos erros da civilização, no Brasil e no mundo. Na maioria das vezes, simplesmente a natureza reage às afrontas da soberba humana. O barranco derriça lama, enquanto o rio toma de volta seu quintal. Áreas de risco namoram a morte.
O poder público deveria, sim, ter normatizado a expansão urbana, evitando os desastres. Quando o fez, poderia ter fiscalizado rigidamente, impedindo que casas fossem construídas em áreas frágeis. Mas os governos, infelizmente, permaneceram lenientes. E a sociedade dormiu no ponto. Nada superou a busca do emprego, somada ao desejo do lar.
Políticos, de todos os naipes, pouco fizeram. A direita nunca ligou para o povo. A esquerda tudo justificava na luta pela moradia. Alguns até ofereciam "kit construção" nas épocas eleitorais, como ocorria aqui, nos mananciais paulistanos. Religiosos construíam igrejas para arrecadar o dízimo nos precários bairros. Sobravam alguns acadêmicos a alertar, sem encontrar eco na opinião pública.
Para arrematar o drama, chegou o aquecimento global. Eventos extremos fazem parte da agenda das mudanças climáticas. A pluviometria indica que as chuvas se concentram. É verdade, portanto, dizer que antes não chovia assim. Também é certo que outrora inexistiam tantos riscos. O resultado aparece tristemente na televisão. A desgraça apetece à imprensa. E tende a piorar.
De pouco adianta procurar culpados. Ninguém também aguenta mais ver autoridades anunciando verbas, nem pisar na lama para aumentar a sua fama. Gente oportunista bancando moralista. Basta. Tirar as enchentes da emergência: assim começa a solução contra essas tragédias anunciadas.
Uma lei, urgente, deveria obrigar os municípios a realizar um plano decenal, a favor da ocupação ordenada do seu território. Nele, prevenção deve virar mantra. Uma década com trabalho ininterrupto, dinheiro garantido, cronograma definido, transparência total. Somente assim, com planejamento urbano, se enfrentam as enchentes assassinas.
No campo, o plantio direto ajudou a salvar a lavoura. Na cidade, com agenda atrasada, a lição de casa, obrigatória, será mais complexa. E precisa ainda enfrentar os azares da política. Prefeito que desleixar deveria perder o mandato. Na hora.
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