Alysson Paulinelli
O Estado de S. Paulo
Tenho sempre falado que quem conviveu no Brasil nas décadas de 60 e 70 com os problemas de alimentação tem muito mais experiências nesse campo que os que vivem nos dias de hoje. Até quase o final do século passado, os países tropicais, como o Brasil, pagaram muito caro o seu despreparo de conhecimentos de tecnologias que permitissem o uso dos seus recursos naturais e deles conseguir retirar, competitivamente, os produtos e alimentos para a sua própria manutenção.
Ou eram receptores de "sobras" internacionais ou pagavam um preço muito caro por aquilo que não sabiam fazer (produzir bem e barato). Creio que o Brasil experimentou essas duas condições.
Atribuo isso à evolução que houve no ensino das ciências agrárias no Brasil, no início dos anos 60, colocando próximo ao modelo dos land grant colleges dos americanos, que permitiu que os nossos profissionais passassem a ser muito mais realistas e preparados para enfrentar o novo desafio que surgira.
A crise da ineficiência industrial, com a urbanização repentina do País, o desabastecimento, provocado pela incapacidade de produzir o alimento para o próprio consumo nos centros urbanos, e a primeira grande crise do petróleo, que elevava o preço de um barril de US$ 3 para US$ 11, num país que dependia de 80% de petróleo importado em seu consumo, levaram-nos toda a liquidez da nossa conta café para o buraco e à expectativa de que passaríamos a viver num país derrotado e falido.
Foi aí que valeu o melhor preparo e a evolução das ciências agrárias do País. Permitiram aos governos que acreditassem e investissem em projetos de busca de novos conhecimentos, em criação de novas estruturas de pesquisas, mais ágeis, com autonomia técnica, científica, administrativa e financeira, dando condições de trabalho e produção aos seus pesquisadores.
Não somente o governo federal criou a Embrapa, mas também 17 Estados ou criaram ou fizeram evoluir as suas já tradicionais instituições de pesquisas, num esforço sem precedente, cujos resultados não demoraram a aparecer. Pode-se dizer que, em menos de 30 anos aqui, se desenvolveu a primeira e mais competitiva agricultura tropical do globo.
O País, mesmo com as dificuldades financeiras pelo acúmulo das três crises, teve a lucidez de acreditar que os investimentos em ciência e tecnologia valeriam a pena. Antes de desperdício poderia ser essa a solução de tantos e infindáveis problemas de um Brasil que necessitava se afirmar, e não se curvar diante das ameaças. De país consumidor de alimentos mais caros do mundo, na década 70, que chegava a consumir quase a metade da renda média familiar só em alimentação, chegamos aos anos 2 mil com um dos mais baratos alimentos do mundo, conforme prova o Ipea em sua última pesquisa sobre custos com alimentação, onde esse gasto não passa de 13,6% da renda familiar. De país receptor ou importador de alimentos à custa da conta café, produto tropical que dominávamos, passamos a ser exportador de comida, fibras, outras matérias-primas agrícolas, óleos e até da energia renovável que o mundo tanto necessita. Criamos em 30 anos uma nova e competitiva agricultura tropical, hoje indiscutivelmente uma solução para garantir que o mundo, mesmo com sua demanda duplicada a cada 30 anos, não fique só na dependência de suas regiões temperadas, que praticamente já esgotam os seus recursos de terra.
Agora tanto se fala, novamente, em crise mundial de alimentos, matérias-primas agrícolas e energia renovável, na subida dos preços das commodities agrícolas e o que isso irá representar econômica, social e ambientalmente para todo o mundo. As vistas de todo o mundo se voltam para o potencial produtivo de suas regiões tropicais e, logicamente, para as tecnologias e capacidade produtiva desenvolvidas no Brasil nesses últimos anos do século 20. E o que é mais engraçado é que nem os governos nem o povo brasileiro se apercebem disso. O agricultor, aqui, para o nosso cidadão urbano desinformado (ou, intencionalmente, mal informado), continua como o vilão de toda a história, como um eterno latifundiário, explorador de mão de obra, caloteiro e aproveitador ou destruidor dos nossos recursos naturais. Numa verdadeira fúria legiferante, procura impor e imputar no produtor nacional todas as culpas, crimes e responsabilidades por todos os males e tormentas climáticas que nos assolam. Arbitram-lhes multas impagáveis ou penas insuportáveis, numa ansiedade de justificar sua insanidade estranhamente criada pelos benefícios que receberam em redução de preços de seus alimentos, pela qualidade melhor dos produtos que consomem e pela tranquilidade de que aqui ainda temos as melhores condições de garantias da existência de alimentos, matérias-primas agrícolas, energia renovável, sem a dependência ou os favores de terceiros, como tínhamos há 30 anos. Esse tem sido o preço que o produtor rural brasileiro está pagando por gerar quase US$ 60 bilhões anuais líquidos para nossa balança comercial, afastar o Brasil definitivamente das crises financeiras internacionais e se posicionar como um dos mais fortes emergentes econômicos no cenário mundial.
O mundo inteiro está atrás de nossa tecnologia porque sabe que ela, além de mais eficiente, é também a mais capaz de produzir de forma sustentável e, inclusive, tem conseguido melhorar muitos de nossos biomas, como é caso dos nossos cerrados.
Não podemos permitir que os investimentos em ciência e tecnologia sejam tremendamente reduzidos a ponto de provocar um verdadeiro apagão tecnológico em nosso Sistema Nacional de Pesquisa Agropecuária, e a própria extinção do nosso Sistema Brasileiro de Assistência Técnica e Extensão Rural.
Os 24 anos de apagão que viveu a Embrapa são injustificáveis, pois ela só não sucumbiu nesse período de martírio porque tinha e tem uma sinergia própria, convincente, o que não ocorreu com as 17 instituições estaduais de pesquisas que hoje estão em verdadeira penúria.
O remendo de um PAC Embrapa foi um alívio louvável, mas não uma solução definitiva com a qual todos sonhamos. O desafio continua e espero que se repitam as medidas oportunas para a pesquisa, e que se estendam a nossa assistência técnica e extensão rural ao nosso crédito rural, ao nosso seguro rural que ainda não temos, e às medidas de defesa de nossa comercialização ainda incipientes.
Que não se esqueçam da nossa logística, hoje tão limitante. Que não se esqueçam do nosso consumidor porque, do contrário, ele, no fim, é quem será inocentemente o grande vilão da história.
Espero que 30 anos na vida de um País não sejam um período tão longo para que cometamos os mesmos erros de 500 anos atrás.
.
Nenhum comentário:
Postar um comentário